Ética da libertação latino-americana

Alberto Vivar Flores

Professor de História e Filosofia na UFAL; membro do GT Ética e Cidadania.

02/09/2022 • Coluna ANPOF

Série especial - Minicursos XIX Encontro Anpof

A Filosofia, no seu corpus philosophicus, compreende diversos tratados: Metafísica, Epistemologia, Lógica, enfim; e, entre eles, o tratado de Ética definido, em geral, como “o estudo da conduta ideal” (Will Durant); porém, ao redor da década de 1960, na América Latina surgiu um modo de filosofar latino-americano conhecido como Filosofia da Libertação, a qual, além de entender-se como “um saber teórico articulado à práxis de libertação dos oprimidos” (Enrique Dussel), trazia na sua bagagem uma Ética da Libertação cujo explícito propósito era: Refletir criticamente sobre o conteúdo moral da práxis de libertação [...], práxis que pode ser descrita como um processo coletivo, conflitivo e diversificado, de caráter político-social, que, ao impulso de uma utopia da libertação, se propõe, por uma parte, a ruptura de uma situação de dependência (interna e externa) e, por outra, a instauração de uma ‘nova ordem’ baseada na autonomia e na hegemonia popular” (Gilberto Giménez). 

Desde dentro desse processo coletivo e conflitivo da práxis de libertação vai surgindo, nutrindo-se e transformando-se um mero sentimento ético de indignação praticado na normalidade quotidiana em atitude ética de libertação; de tal forma que “À Ética da Libertação lhe interessa, estritamente, o momento no qual a legitimidade da ordem dominante [...] se torna ilegítima” (Enrique Dussel); ou, para melhor dizer, o momento no qual os oprimidos, explorados, marginalizados, descriminados, excluídos, humilhados e ofendidos do mundo decidem-se a “transformar o sofrimento de não ser no sofrimento que a luta por ser lhes impõe. Enquanto o primeiro constitui uma forma de aniquilamento, o segundo se converte na esperança que os move” (Paulo Freire). 

Será a partir desse momento estelar, ou seja, do momento em que “o movimento de rebelião se apoia, ao mesmo tempo, no rechaço categórico de uma intrusão julgada intolerável e na certeza confusa de um bom direito; mais exatamente, na impressão do rebelde de que tem direito a... [...] de ter[...], de alguma maneira e em alguma parte razão” (Albert Camus), que surge o conteúdo e o desenvolvimento específico de uma Ética da Libertação. O desenvolvimento de seu conteúdo – inicialmente, latino-americano e, atualmente, em perspectiva mundial −, segundo o máximo representante da Filosofia da Libertação, Enrique Domingo Dussel Ambrosini (1934), parte de uma estrita investigação Histórica, e se desdobra e engravida através de uma Erótica, Pedagógica, Política, Econômica e Arqueológica, donde sua singular eticidade experimenta-se e vive-se como imoralidade ante a moralidade exigida pela Moral do status quo e, também, como ilegalidade ante a legalidade reclamada pelo flamejante e injusto Estado de Direito do sistema do modo de produção vigente. 

Assim, pois, desde o contexto mundial em que se situa a História de uma América Latina mestiça, utópica e rebelde, crente e oprimida, a qual, entre outras muitas coisas, justifica e legitima a existência de uma Ética da Libertação, Enrique Domingo Dussel Ambrosini pergunta-se: “Até quando a Humanidade suportará paciente e pacificamente este sistema necrófilo? De nossa parte, gostaríamos de lhe responder, respeitosamente, em pé e dispostos a caminhar, com as palavras um tanto proféticas de Karl Marx: As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a Pré-História da sociedade humana”.