Ética e Pandemia

Ivone Gebara

Doutora em Filosofia (PUCSP)

15/06/2021 • Coluna ANPOF

Não é novidade que em períodos críticos da história humana a necessidade de repensar a ética se tornou para muitos uma exigência. Em meio a catástrofes, a guerras, a situações trágicas coletivas sempre voltamos a nos perguntar sobre o sentido da destruição que acometeu nossas vidas e buscamos compreender algo e nos organizar para novos recomeços. O que fizemos para que isso nos acontecesse? Buscamos razões, culpas e culpados como se a vida não fosse também cheia de obscuridades, contradições e sempre fornecendo limitadas apreensões de seus rumos.

Nesse largo momento de pandemia mundial a mesma preocupação parece se impor. Mas, o que  de fato estamos compreendendo quando pronunciamos a palavra ética? Qual é a ética que precisa ser pensada? Qual é a ética que está sendo vivida?

A palavra ética parece ter múltiplos sentidos nestes tempos difíceis. Se tentarmos apreender alguns deles a partir do atual fenômeno comum pandêmico veremos  que a ética é apreendida em primeiro lugar na linha do conflito das éticas. São tantas as formas de comportamento, de orientação de nossas relações, de explicações e de consequências que ficamos muitas vezes em estado de perplexidade.

A ética não é um conceito unívoco. Não é uma realidade única, não se expressa em ações convergentes em favor do chamado Bem Comum, mas se abre  a um pluralismo de comportamentos equidistantes das palavras do ‘dever ser’ e dos ideais comumente pronunciadas.  Uma coisa é a teoria ética e o significado da palavra, outra coisa é a prática ética. Uma coisa são comportamentos  solidários vividos onde jamais se usa a palavra ética. Outra coisa são os discursos cheios de abstrações tais como política ética, ética na política, religião ética, pessoas éticas, mas que na realidade são muitas vezes apenas palavras jogadas ao vento.

A pandemia atual mostra-nos cada vez mais o esgarçamento do tecido humano. Sentimo-nos perdidas, vivendo um instante instável, incapazes de prever o amanhã mais remoto. É como se fôssemos simbolicamente a árvore humana que começou a cortar seus próprios galhos, a impedir que os rios que serpenteiam o terreno onde a árvore está plantada continuassem por perto irrigando-a. Uma árvore que se acreditou autossuficiente, capaz através de seu pensamento, de explorar o mundo ao seu redor, de destruir parte de seu corpo para que apenas o topo florescesse, gozasse e se mostrasse à luz do sol. Raízes, galhos, flores, seiva, pássaros e insetos que nela se aninhavam começam a morrer. Os cupins a invadem não por maldade, mas pela fome. Suas folhas começam a fenecer e caem às milhares.

A analogia serve para refletir sobre a depredação que vivemos ao tirar o alimento de muitos seres e sermos atacados depois por cupins famintos que estão nos destruindo. Ao mata-los também nos matamos de certa forma. Como inventar novos comportamentos, novos etos, novas éticas que limitem nossa voracidade e nos ajudem a construir relações mais equitativas? Este é o desafio ético que a vida nos impõe hoje. Se queremos viver é preciso começar a renunciar a nossa ganância individualista acumulativa. É preciso renunciar à autodestruição que fazemos quando devoramos nossa árvore comum extraindo dela suas forças em benefício de uma elite de privilegiados e de fantasias de dominação.

Esse processo de afirmação de um  etos menos egocêntrico, menos elitista, menos violento tem que começar com cada um de nós. Não basta apenas denunciar a palha no olho do outro/a. É preciso acolher a palha em seu olho e saber que todos somos habitados pelo desejo narcisista de sermos sempre mais e melhor do que os outros/as. Essa é sem dúvida uma velha e simples receita que nos vem desde os grandes mitos, passa para a filosofia antiga, atravessa as grandes religiões e sabedorias, porém dificilmente é aprendida. A pandemia está nos convidando novamente a recuperar essa espécie de etos presente em nós e em luta contra as sombras gananciosas de nós mesmos. É preciso pois retomar em silencio e na partilha com os que sentem o mesmo incômodo a busca de novos caminhos. Caminhos para além das receitas simples de autoajuda ou dos pregadores do momento. Como dizia o velho Sócrates a filosofia começa com o “Conhece-te a ti mesmo”.