"Eu não sou racista" - O uso falacioso de estereótipos sobre racistas: observações a partir de um caso concreto

05/05/2020 • Coluna ANPOF

Fernando de Sá Moreira 

Professor Adjunto de Filosofia da Educação do Departamento de

Fundamentos Pedagógicos (SFP/FEUFF)

Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

No início de abril de 2020, o Ministro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub, publicou um tuíte no qual usava o personagem Cebolinha, da Turma da Mônica, para satirizar a China e levantar suspeitas quanto a um suposto "plano para dominar o mundo". Na postagem, ele explorava a dificuldade de pronúncia do som de “R” que muitos chineses apresentam ao falar português, pronunciando-o como “L”. Trata-se da mesma dificuldade apresentada pelo personagem de Maurício de Sousa.

Essa é uma "piada" cansativa e repetitiva, que pode ser enquadrada em uma modalidade de preconceito e discriminação conhecida como “racismo recreativo”. Asiáticos são constantemente estereotipados a partir dessa “brincadeira”. Na verdade, mesmo brasileiros de ascendência asiática, cuja língua nativa é português, são caracterizados como “satirizáveis” a partir de estereótipos raciais tais como o explorado pelo ministro.

Em um primeiro momento, a atitude reprovável de Weintraub gerou mal-estar com a Embaixada Chinesa no Brasil. Em uma manifestação sobre o caso, o porta-voz da embaixada denunciou um “cunho fortemente racista” nas declarações do representante máximo do Ministério da Educação brasileiro. Passadas algumas semanas, o Supremo Tribunal Federal, a pedido da Procuradoria Geral da República, abriu um inquérito para investigar o caso. No mesmo dia (29/04), o ministro Weintraub se manifestou sobre o caso em uma entrevista concedida à Paula Marisa, youtuber conhecida por ser grande apoiadora do Governo Bolsonaro e do ministro Weintraub. E lá, o ministro mostra ser, para dizer o mínimo, bastante ignorante sobre questão racial e racismo no Brasil.

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“Eu não sou racista”, repetiu o ministro algumas vezes. Para defender essa ideia, isto é, em sua defesa, ele lançou mão de basicamente 3 argumentos: 1) Afirma que estudou na USP, fez mestrado na FGV e trabalhou em grandes corporações; 2) Diz que fez um MBA com estudantes chineses, que gostavam dele; 3) Declara que seu “histórico familiar” tem uma “mistura muito grande”.

O primeiro elemento a observar é: acusado de cometer um ato racista, ele direciona sua argumentação para longe do ato cometido. Ao falar de si, e não da ação, ele tenta pintar uma imagem de alguém “imune ao racismo”. Lamentavelmente, é uma estratégia argumentativa muito empregada. É quase inacreditável que ela seja historicamente tão eficiente, ainda que não possua qualquer fundamento lógico. A meu ver, esse fenômeno está ligado aos estereótipos sociais sobre o que é um racista. Como qualquer estereótipo, os estereótipos sobre o racista são imagens falsas e/ou imprecisas, tomadas socialmente como verdadeiras e empregadas de modo a prejudicar o debate mais aprofundado.

Vamos então olhar mais detidamente os argumentos de Weintraub:

1) É preciso ser honesto nesse ponto: sua argumentação não é bem estruturada aqui, por isso, talvez ele não quisesse usar o ponto 1 como um argumento em si, mas apenas como introdução ao ponto seguinte. Em todo caso, chama atenção o fato de iniciar sua defesa pela ideia de que seria uma pessoa inteligente. Ele diz explicitamente “não sou analfabeto, não sou burro, sei fazer conta”. Ora, como isso provaria que ele não seria uma pessoa racista? Não prova. Porém, dialoga muito bem com o estereótipo de que todo racista seria uma pessoa burra. No senso comum, se diz de modo simplório que racistas são pessoas cheias de “pré-conceitos”, isto é, pessoas com ideias irrefletidas e pouco informadas. Ao colar sua imagem a noções vagas de “inteligência”, Weintraub afasta-se convenientemente do estereótipo do “racista burro”. Isso sem colocar na mesa, em momento algum, seus atos identificados como portadores de um “cunho fortemente racista”.

2) Na sequência, ele conta que fez um MBA internacional, durante o qual participou de uma turma de 140 estudantes e passou por 5 universidades. Cerca de 30 alunos seriam chineses e uma das instituições estaria sediada em Hong Kong. Para se defender das acusações, ele afirma que tinha um bom relacionamento com esses alunos chineses. Segundo seu relato, ele teria sido o único ocidental a ser homenageado com um nome em mandarim por eles. Trata-se de uma versão asiática da máxima “não sou racista, tenho até amigos negros”. Ora, mas a proximidade afetiva eventual em relação a alguns indivíduos de um grupo racialmente depreciado nunca esteve em contradição com o racismo que uma pessoa pode manifestar. É uma argumentação absurda e falaciosa, mas infelizmente tem se mostrado convincente para alguns. Isso porque ela dialoga com o estereótipo de que racistas seriam incapazes de ficar minimamente próximos dos grupos racializados. Nada mais falso. Particularmente curioso é notar que Weintraub revelou que teve receio de ter recebido um nome falso em mandarim, como “babaca de óculos”. O receio adveio do fato de que, segundo ele mesmo, ele  “bagunçava muito com eles, mais do que Cebolinha”. Não está claro se ele “bagunçava muito” com os estudantes chineses lançando mão de piadas racistas, mas tampouco está excluída essa hipótese. Não sabemos o que é “bagunçar” com um nacional chinês por meio de algo “mais do que Cebolinha”.

3) O terceiro argumento pretensamente em favor da tese “eu não sou racista” é um velho conhecido de quem estuda as relações étnico-raciais no Brasil. O ministro resgata um “histórico familiar” com uma “mistura muito grande”. Ele afirma inusitadamente que sua pele é “muito escura” e que um de seus avós era “morenão”. Uma outra formulação desse argumento poderia ser talvez “não posso ser racista, pois tenho um avô negro”. Um familiar racializado na linhagem de um indivíduo é usado como escudo contra qualquer acusação de racismo. É um argumento muito ruim, mas que dialoga perfeitamente com o estereótipo de que um racista é necessariamente um indivíduo racialmente “puro” ou defensor de
um “purismo racial”. Isso é completamente falso, em especial no Brasil. Aqui, o racismo ganhou a forma de políticas de branqueamento da população, que propunham que a população brasileira deveria se tornar mais branca, física e culturalmente, por meio da miscigenação associada à promoção da imigração de origem europeia. São políticas racistas, mas sem o “purismo racial” de racismos historicamente ligados aos EUA e Europa, por exemplo.

Em suma, nenhum dos argumentos toca minimamente no problema. Contudo, eles serão certamente eficientes para o convencimento das bases de apoio de seu enunciador. Como tentei mostrar, parte dessa eficiência parece estar ligada à existência de certos estereótipos. Estes não dizem respeito, no entanto, ao grupo que foi objeto de preconceito ou discriminação, mas antes ao sujeito agente do ato preconceituoso ou discriminatório. Tão importante quanto combater os estereótipos sobre os grupos racializados, é combater os estereótipos a respeito de quem é praticante do racismo.

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No restante da entrevista, Weintraub se dedica a pintar um cenário, no qual ele seria atacado e precisaria lutar contra indivíduos e grupos que, a seu ver, querem prejudicá-lo e a educação no país. Essa narrativa certamente será tomada por seus apoiadores como uma explicação do porquê ele estaria sendo acusado de racismo. Todavia, o próprio ministro não fez essa conexão argumentativa de forma mais dedicada, portanto, não vou me deter nessas colocações. Antes de encerrar, é importante notar ainda uma coisa. Perto do final da entrevista, quando o assunto “racismo” já havia sido encerrado, o ministro faz uma série de considerações com teor bastante preconceituoso. Ele argumentava que o MEC havia criado bolsas para áreas como medicina e epidemiologia, “porque essa não vai ser a última vez que vem uma peste dessa lá da China”. Pois bem, de modo geral, uma preparação para novas epidemias ou pandemias é positiva, ainda que eu veja com desconfiança as medidas anunciadas para essa preparação. Mas isso já é outro assunto. A respeito da questão de racismo aqui analisada, chama-me a atenção particularmente a fixação de Weintraub pela China.

De acordo com o ministro, nos últimos 20 anos, quatro epidemias/pandemias teriam vindo da China: SARS, H1N1, gripe aviária e covid-19. Ele parece tão convicto que uma nova pandemia surgirá necessariamente em território chinês, que comete erros grosseiros. Por exemplo, o H1N1 é um vírus comum em todo mundo, cuja cepa causadora da pandemia de 2009 originou-se no México! Também a gripe aviária é relativamente endêmica em frangos e outras aves na Ásia, sem qualquer conexão específica com a China isoladamente. Nada justifica a ideia que ele defende.

Ao invés de refletir séria e prudentemente sobre o tema, ele apresenta as seguintes razões para já apontar a China como origem da próxima pandemia. Ele fala da existência de “várias coisas juntas”, mas todos os seus exemplos recaem sobre uma visão caricata da cultura chinesa: uma noção difusa de que, “para eles, frio é morte”; que há bichos vivos nos mercados; e que comem “bichos que não chegamos perto”. Tudo o que foi apresentado dialoga de forma rasa com o estereótipo negativo da cultura chinesa como exótica, pouco higiênica e refém de crendices sobre a saúde.

Novamente a caricatura toma o lugar da realidade e origina erros grosseiros. Weintraub parece ignorar que o H1N1 saltou de suínos para humanos e a gripe aviária ataca frangos, ambos animais muito criados e consumidos no Brasil. Ele também parece não saber que, até o momento, não há indícios sérios que os vírus da SARS e da covid-19 tenham saltado para seres humanos por causa de qualquer hábito alimentar. Ou seja, Weintraub dissemina informações falsas, imprecisas e caricatas nessas declarações sobre a China.

Mas, tudo bem, ele tem amigos chineses, um nome em mandarim e um avô “morenão”. Então, está tudo certo.