Filosofia brasileira uma questão?
Rafael Haddock-Lobo
Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ
06/10/2016 • Coluna ANPOF
O que torna um filósofo um filósofo brasileiro? Basta que ele tenha nascido no nosso território ou, para que faça jus ao título, deveria se exigir algo mais? Mas, se for isso, o que seria esse algo mais? Um jeito brasileiro de se fazer filosofia? Uma certa identidade entre aqueles que fazem filosofia em nosso país? Tais questões parecem pertinentes, na medida em que, de um lado, parece completamente aceitável por grande parte dos historiadores da filosofia classificações como filosofia alemã, filosofia francesa ou filosofia anglo-saxã; e, de outro lado, parece também aceitável que, em termos de literatura, artes plásticas, cinema e música, por exemplo, se aceite o predicado brasileiro para reunir os praticantes dessas áreas em nosso território. Contudo, parece ainda insuficiente, salvo raros casos, o uso do termo filosofia brasileira para o que se faz hoje aqui. Nesse sentido, gostaria de abordar brevemente possíveis razões para se tratar a questão da existência ou não de uma filosofia brasileira como um problema fundamental para nossos dias.
Comecemos, portanto, por tentar compreender porque não parece um problema falar de filosofia alemã, francesa ou anglo-saxã. Seria apenas uma questão territorial ou linguística que permitiria reunir de Kant a Heidegger e Benjamin, de Descartes e Rousseau a Derrida e Deleuze, de Hume e Bentham a Russel e Rorty? Seria, caso a resposta à questão anterior seja negativa, uma questão de método tão-somente? Ou deveria haver algo mais que permitisse a reunião desses autores em um conjunto maior? Poderíamos pensar nesse algo mais, que permeia tanto a questão territorial-linguística como a metodológica, como certo pertencimento a uma tradição e que teria, na relação com essa tradição, que envolve método, língua e cultura, a condição de possibilidade do aparecimento de uma assinatura, ou, como prefiro chamar, de estilo.
Pensando dessa maneira, não parece absurdo, em termos artísticos e culturais, afirmarmos que haveria certo estilo ou assinatura brasileira na literatura, no cinema, na música etc. Caberia, então, pensarmos em que medida haveria, na filosofia, traços que permitissem a reunião de autores que fazem filosofia no Brasil em torno do nome filosofia brasileira. A questão, então, seria, agora, pensar se as filosofias de Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto, Farias Brito e mesmo filósofos mais recentes, como Oswald de Andrade e Bento Prado Júnior, poderiam ser reunidas em torno de um mesmo adjetivo que, recusando ater-se meramente ao território ou a língua, deveria dizer respeito a essa assinatura ou a esse estilo próprio que os caracterizaria como filósofos brasileiros.
Talvez, a chave para se pensar a dificuldade de se encontrar esse algo mais mesmo nos grandes nomes que fazem e fizeram filosofia em nosso país, como talvez em grande parte dos países do antes chamado terceiro mundo, esteja ligada inseparavelmente à história colonial, que se reflete diretamente no processo colonial pelo qual também passou (e ainda passa) nossa academia. Se levarmos isso a sério, podemos assegurar que, ao longo dos séculos em que se faz filosofia em nosso país, fomos cada vez mais nos aperfeiçoando, e esse aprimoramento permite que hoje se faça uma filosofia tão competente como a que se faz em qualquer outro país dito desenvolvido no mundo: tanto na área de história da filosofia como da lógica e da filosofia analítica, participamos de um amplo debate internacional e podemos afirmar que em nada ficamos atrás deles, os desenvolvidos (com exceção, é claro, de condições de trabalho, financiamentos, bibliotecas etc.). Entretanto, isso permite afirmar que se faz uma filosofia brasileira de excelência ou que fazemos uma filosofia que ganha cada vez mais crédito sob o crivo euro-americano do que se entende por filosofia? Em outros termos: podemos dizer que, hoje, fazemos efetivamente uma filosofia brasileira ou fazemos uma excelente filosofia aos moldes europeus?
A resposta me parece óbvia, mas caberia, então, perguntar se seria necessário fazer uma outra filosofia e se, inclusive, essa outra filosofia, caso não possa ser concebida como europeia, teria ainda resguardado a ela o nome filosofia, que é certamente um nome europeu e que diz respeito a certa tradição do ocidente. Ou seja, em que medida o fato de estarmos, cada vez mais próximo do padrão de excelência pode ainda ser considerado insuficiente para nossa experiência filosófica e, caso tentemos experimentar outras formas de se fazer filosofia, será que, com isso, não estaríamos pondo a perder todos esses séculos de esforço para nos equipararmos aos grandes comentadores e especialistas estrangeiros?
A resposta a essas questões poderia se focar num primeiro aspecto: porque não há um grande nome na filosofia brasileira como encontramos na literatura, cinema, artes plásticas etc? Certamente, foi esse estilo ou assinatura que artistas como Tarsila do Amaral, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, Egberto Gismonti, por exemplo, acabaram crivando como brasilidade, que os tornou reconhecidos nacional e internacionalmente. E tal especificidade nossa consiste apenas no fato de que, não podendo cair num ufanismo, ressalta elementos de nossa língua e nossa cultura, colocando-os em relação com a tradição europeia, que é também e por certo a nossa. Isso porque, se pensarmos no tripé ao qual Gilberto Freire atribuía a sustentação de nossa cultura, o branco, o negro e o indígena, o pensamento ocidental consiste apenas em um aspecto da nossa tradição, sendo nossa experiência muito mais ampla do que aquilo que a filosofia ocidental pode dar conta.
Talvez, nesse sentido, poderíamos dizer que o Movimento Antropofágico tenha sido a primeira tentativa de desenhar uma assinatura de pensamento brasileira, na qual esse adjetivo não
represente algo de próprio, idêntico, mas sim uma multiplicidade de forças que confluem em nossa cultura. Radicalizando o tripé de Freire, podemos, inclusive perguntar: que branco é esse entre portugueses, italianos, alemães, ucranianos etc.; mas também, é claro, que negro e que indígena é esse dentre as tantas culturas, línguas e experiências religiosas que constituem o que aqui, por falta de conceito, ou justamente por oposição ao europeu, chamamos de negro ou ameríndio.
Sem um olhar cuidadoso a essas experiências de pensamento, com a mesma dignidade filosófica que concedemos aos grandes pensadores europeus, nunca conseguiremos dar prosseguimento a uma necessária desconstrução do colonialismo que impera na filosofia. Enquanto não tratarmos os sistemas de pensamento iorubá, por exemplo, ou os ameríndios, como importantes elementos à especulação filosófica, nunca conseguiremos contribuir para que um dia possa vir a acontecer um pensamento de assinatura brasileira.
Mas seria filosofia o nome desse pensamento que como propriedade teria apenas a confluência de distintas experiências étnicas, artísticas, culturais e religiosas? Talvez não, se o nome filosofia for pensado em termos apenas ocidentais, com uma data e um local de nascimento determinados, mas pesquisas como as que o professor Renato Noguera desenvolve atualmente na UFRRJ tentam mostrar, em consonância com muitas pesquisas realizadas tanto em países africanos como nos Estados Unidos, que podemos ter outros berços para a filosofia, como o Egito, por exemplo. E, sem querer dizer quem vem antes de quem, ou seja, que é mais original do que quem, tais pesquisas apenas apontam para o fato de que o mito da origem única é uma grande invenção do ocidente e que a experiência de pensamento pode apontar para mais de uma perspectiva e que, talvez, seja essa uma experiência filosófica única para a qual podemos contribuir com nossa brasilidade múltipla.
Não obstante, se sempre coube ao filósofo o direito de repensar, redefinir o que era, para ele, a própria filosofia, podemos, então, lutar, ao lado de iniciativas como as de Noguera, mas também de Davi Kopenawa, para que o nome filosofia não seja a marca de uma exclusão, colonialista e epistemicida, mas que, pelo contrário, seja a possibilidade de pensarmos de modo mais amplo e radical a experiência de nossa cultura, de nossa sociedade, de nosso tempo.
05 de Outubro de 2016.