Filosofia, democracia e status quo: filosofar e ensinar a filosofar no Brasil hoje

Joana Tolentino

Doutora em filosofia pelo PPGF-UFRJ

29/10/2021 • Coluna ANPOF

O esforço deste breve escrito é pensar alguns elementos da difícil relação entre filosofia e status quo, nesse campo híbrido entre filosofia, políticas educacionais e estado, no tempo-espaço dos dias atuais, situado no Brasil, no contexto complexo que vivenciamos de país periférico colonizado. Vivemos, quando muito, numa democracia asfixiada. Focarei na micropolítica, propondo um recorte que entrecruza os campos da filosofia e da educação. Nesse enredo ganha destaque a reforma do ensino médio (lei 13.415/2017), cuja adequação vem sendo cobrada a fórceps, por parte do MEC, às secretarias estaduais de educação, principais responsáveis pela oferta pública dessa etapa da educação básica. 

Essa jogada do “novo ensino médio” emerge como estratégia prioritária no projeto de asfixiar a jovem e imatura democracia brasileira, de estrutura frágil e saúde instável. Mesmo em plena pandemia, continua a pressão pela adoção da reforma por parte dos estados, o que já ocorreu na maioria, a despeito do modo antidemocrático com que se pretende promover tamanha alteração na constituição federal, reformulando a fase final da educação básica - entendida em nossa carta magna como um direito de todes e dever do estado (garantir a sua oferta). Alterar a LDB (Diretrizes e Bases da educação – lei 9.394/96) é alterar parte da constituição nacional. Assim, já éramos sufocados com a reforma do ensino médio e a ânsia por rasgar a constituição cidadã, menos de um mês após a concretização do último golpe de estado no Brasil, em 2016, muito antes da preocupação em aprovar a reforma trabalhista ou da previdência. Talvez tenha havido pudor quanto à legitimidade de fazer as outras reformas logo após um golpe de estado, durante um governo que, afinal, não tinha sido eleito – porém não houve o mesmo pudor em relação ao esquartejamento do projeto de educação básica, que havia sido recentemente reiterado, com ampla participação de diferentes setores sociais, no Plano Nacional de Educação (PNE/2014-2024) em vigência. 

Reformas na educação costumam demorar a se sedimentar, o que fazia essa soar como “urgente” para alguns setores da sociedade, diante das insurgências que não paravam de crescer. Só se ampliavam demandas sociais a interseccionar o recorte de classe com outros segmentos de luta, como o movimento estudantil, camponês e as lutas identitárias de gênero, sexualidades, étnico-raciais. As primeiras ocupações estudantis nas escolas do Brasil, em 2015, surgiram como resposta às tentativas de reorganização do sistema escolar em determinadas localidades da federação, mas já associavam à sua pauta central uma maior qualidade e investimento na educação pública, evocando a meta 20 do PNE: 10% do PIB para a educação. As ocupações que as sucederam (2016), pós-golpe, já lutavam contra o teto de gastos públicos em áreas sociais, o combate ao racismo e sexismo nos espaços escolares e muitas reivindicavam também mais tempos de aula de filosofia e sociologia na carga horária do ensino médio.

A lei 13.415/17 foi primeiramente imposta como medida provisória 746/2016 (instrumento que deveria se restringir a acelerar demandas emergenciais, nunca para mudanças estruturais) e, posteriormente, houve sua surpreendente aprovação relâmpago: em seis meses foi aprovada no congresso nacional, sem discussão com a sociedade, estudantes e associações estudantis, docentes e suas entidades. A fala exclusiva foi a propaganda do “novo ensino médio”, veiculada na grande mídia, criando falsas expectativas de escolha por parte do alunado, quando à escola sequer é exigido oferecer mais de um itinerário formativo. Na prática, observamos que a lei é uma grande desregulamentação da oferta de ensino nessa fase final da educação básica, em especial para a gestão pública. Isso porque impõe o formato de “áreas de conhecimento” (i. Matemática, ii. Linguagens e códigos, iii. Ciências da natureza, iv. Ciências humanas e sociais aplicadas, v. Formação técnica e profissional), mas sem regulamentar a presença de nenhuma outra disciplina, exceto matemática, língua portuguesa e inglesa. Na realidade brasileira em que mais da metade dos municípios tem uma única escola pública de ensino médio, geralmente distante das localidades periféricas: o que escolher quando haverá apenas um caminho a seguir?

O que exatamente o novo ensino médio, etapa na qual historicamente se insere a filosofia na educação básica (ainda que com hiatos e intermitências), e sua reforma, podem interessar à comunidade de pós-graduação em Filosofia da ANPOF? Quando falamos da ANPOF, diferente da estruturação entre saberes e poderes em outros países, nos referimos a uma comunidade de docentes – mais especificamente de professoras/es universitárias/os de filosofia, em sua maioria atuando em universidades públicas, em departamentos com majoritário número de matrículas no curso de licenciatura em filosofia. Assim, questões que se referem ao ensino de filosofia são parte importante das atividades docentes. Se ainda há quem defenda a elitização do ensino de filosofia, acessível apenas à classe dominante, a uma oligarquia (ou vanguarda) esclarecida - essa não parece ser a posição da comunidade da ANPOF que reitera suas escolhas em eleições de diretorias que, seguidamente, valorizam a expansão institucional da mesma, com abertura de novos espaços para a filosofia na educação institucionalizada. Estes espaços, mesmo na pós-graduação, se ampliaram na última década alavancados pela obrigatoriedade do ensino da filosofia no ensino médio, o que forçou a criação de novos departamentos de filosofia nas universidades de todo o país, impulsionados pela necessária formação docente em filosofia. 

A situação agora é outra e, ao contrário, a presença da filosofia na educação básica encontra-se ameaçada com o novo ensino médio e sua dissolução por áreas. Não faço aqui uma defesa da filosofia imbricada na disciplinaridade, aos moldes denunciados por Foucault, em Vigiar e punir, como um incremento nos dispositivos de disciplinarização, em instituições disciplinares como a escola (ou a universidade). A história dos sistemas massivos de ensino das instituições modernas, criados na Europa na consolidação do capitalismo, evidencia esse propósito de obter máxima produtividade, na mesma proporção em que se alcança máxima docilização dos mesmos corpos. Esse projeto, quando exportado, via colonização industrial capitalista moderna, às supostas periferias da humanidade, como a Latino América, só intensificaram suas contradições e subalternizações. 

Porém, parece pouco estratégico dissolver a presença da filosofia na educação básica, quando se trata de formação, seja da: juventude, criança, adulto ou idoso. Pode, a comunidade filosófica brasileira, na atualidade, renunciar à sua faceta mais pública, que é sua presença na educação básica? E, assim, abster-se de dialogar com pessoas que não escolheram a filosofia como trabalho ou projeto de vida, mas que podem acessar, desde a filosofia, importante tônico existencial, desenvolvendo ferramentas críticas de compreensão das problemáticas do mundo e, assim, contribuir para a criação de ouros modos de inserção social das subjetividades. Podemos, nesse momento em que estamos vivenciando, no império das fake news, em meio à pós-verdade, diante da acelerada algoritmização da existência, perder esse espaço de encontro, troca, escuta, fala compartilhada, investigação, elaboração argumentativa, fundamentação, tessitura de discursos, posicionamento na coletividade – e tudo o mais que cabe numa aula de filosofia? (E que se insere na colcha de retalhos do filosofar). Pensamos que cabe à comunidade filosófica, situada e contextualizada, fazer a si mesmo essa pergunta, além de outras que perpassam o filosofar e o ensinar a filosofar, a relação entre filosofia, educação e vida, lançando-se na busca - se não de definições, que mais encerram do que abrem possibilidades - pelo menos de caminhos para trilharmos atitudes filosóficas capazes de potencializar a vida e a com-vivência. 

Diante da ausência de regulamentação no novo modelo de Ensino Médio, o que temos presenciado é o gradual apagamento do filosofar nas escolas – talvez restando algo como conteúdo transversal, porém não mais a atitude filosófica, a centelha do filosofar, isso que é próprio à filosofia, seu modus operandi, sua especificidade. Poderia parecer interessante o convite para a filosofia dialogar com outras matrizes de conhecimento, caso se mantivesse sua especificidade. Porém, hoje, na prática, vemos a filosofia circunscrita às humanidades e, com o excesso de fragmentação a tornar prescindível a própria formação em filosofia, o risco real de virar mais um item imperceptível no interior de conteúdos transversais, perdendo o espaço de diálogo público e a contribuição na formação. 

No entanto, quando pensamos em nos lançar novamente à defesa da filosofia como conhecimento necessário às gerações em formação, é indispensável dar um passo atrás e, em profunda atitude filosófica, nos perguntar que filosofia é essa que entendemos como necessária, devendo estar acessível a todes. Queremos a presença de uma filosofia que, ao invés de libertária, provoca a alienação de si na maior parte das subjetividades que a praticam? Uma filosofia eurocentrada que exclui pessoas não-brancas, não-binárias, não-heteronormativas (brasileiras/os e latino-americanas/os)? Aonde está a autocritica filosófica que finge não perceber o epistemicídio provocado por seu cânone branco-hetero-patriarcal-urbano-eurocentrado? Uma comunidade filosófica sem consciência de si, que não se percebe como agente da colonialidade? Reitero aqui o convite para essa comunidade se questionar mais e mais, se perguntando: quais filosofias quer praticar?; que filosofares alimentar?; que espaços estratégicos ocupar? Não para impor limites, mas, ao contrário, para romper muros, ruir barreiras e criar mais acolhimento a diálogos e existências filosóficas.

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