Filosofia desenraizada: um vício de origem

Claudinei Luis Chitolina

Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor de Filosofia da Unespar - PR.

09/06/2022 • Coluna ANPOF

A presença ou a existência de atividade filosófica (cursos, pesquisa, teses, eventos, livros, dicionários, artigos etc.) entre nós não é per se demonstração de que filosofamos ou de que fazemos ou produzimos filosofia. É possível apropriar-se ou reproduzir ideias filosóficas alheias sem pensar filosoficamente. É um truísmo dizer que existe filosofia no Brasil, dado que existe atividade filosófica, mas não é óbvio nem incontroverso dizer que existe uma filosofia genuinamente brasileira – gestada e desenvolvida em nosso solo pátrio e com fisionomia própria. De outra parte, quer-nos parecer que a ideia de uma “filosofia brasileira” (nacional ou do Brasil) é uma contradictio in terminis, dado que toda filosofia traz consigo uma pretensão de universalidade (ou de alcance universal) – que transcende sua época e seu lugar de origem. O adjetivo gentílico identifica ou define o lugar de origem de uma filosofia, mas não seu alcance e sua validade. O filósofo tem pátria, mas a filosofia é apátrida. 

A obra filosófica dá existência ao filósofo (e vice-versa), assim como a obra de arte dá existência a um artista. A filosofia é um fazer ou uma atividade intelectual de criação e de invenção de ideias ou conceitos, ao passo que o conhecimento historiográfico da filosofia limita-se à compreensão e interpretação de ideias alheias que são, à primeira vista, estranhas à nossa realidade e a nós mesmos. Se os problemas filosóficos são universais, porque interessam a todo ser humano, disto não se segue que as filosofias são eo ipso relevantes e pertinentes a todos os povos e culturas. A filosofia é filha de seu tempo; se realiza sob condições concretas, porém, por dever de ofício, o filósofo pensa contra seu tempo, traduz seus problemas e suas contradições. 

Note-se que a história da filosofia nos ensina que o pensar filosófico move-se da realidade particular de onde extrai seu conteúdo em direção ao universal concreto ou à compreensão conceitual, mas nossa prática filosófica tem permanecido, em grande medida, no plano da universalidade abstrata (idealidade), ao invés de refletirmos sobre nossa realidade. Porém, a dialética entre particularidade (conteúdo) e universalidade (forma) demonstra que o pensamento filosófico não é autárquico, mas social e culturalmente situado. A filosofia se nutre da realidade concreta – de problemas reais que instigam e desafiam o pensamento. Entretanto, no Brasil, desde a colonização, o pensamento filosófico tem adquirido um comportamento autofágico. Segundo Schopenhauer (A arte de escrever), a erudição consiste em vestir o pensamento com ideias alheias. Ora, a filosofia não tem autores nem textos sagrados ou verdades inquestionáveis, por isso, o culto ao texto filosófico – a defesa apologética de um filósofo constitui um impedimento para o exercício crítico e criativo da razão filosófica. 

Ao que parece, necessitamos de um manifesto antropofágico, a fim de rompermos com nossa dependência intelectual e cultural. No dizer de Bento Prado Jr. (O problema da filosofia no Brasil), aqui a ave de minerva alça seu voo antes do amanhecer; a filosofia chegou antes do filósofo, por isso, permaneceu historicamente estranha, distante ou desconectada da realidade brasileira. A recusa do contexto é a recusa de nossa realidade (de nossa história e tradição) – topos ou lugar desde onde deveríamos filosofar. A erudição livresca e o vício do textualismo de que padecemos – a falsa ideia de um pensamento autorreferenciado ou autossuficiente é uma prática antifilosófica. Nosso vício de origem – a admiração pelo estrangeiro e o consequente sentimento de inferioridade fez com que produzíssemos uma filosofia sem raízes culturais, irrelevante ou insignificante para o debate público e para os destinos da sociedade brasileira.

De acordo com Kant (Resposta à pergunta: que é o Esclarecimento?), a conquista da maioridade filosófica pressupõe o esclarecimento – a emancipação intelectual e moral de um povo. Não há filosofia sem o exercício da liberdade de pensamento. Por isso, a realização da filosofia se dá na esfera pública (no uso público da razão). Neste sentido, a divisa kantiana, sapere aude (atreve-te a pensar, ousa saber) é condição para a emancipação intelectual. Noutros termos, é preciso pensar não apenas com os nossos mestres, mas contra eles. Romper com as tutelas é uma exigência intrínseca de todo pensamento crítico e autônomo. Mutatis mutandis, Nietzsche dirá (em Assim falou Zaratustra) que mal remunera o mestre o discípulo que não o supera. 

Como se pode depreender do desenvolvimento histórico da filosofia, o surgimento de uma nova filosofia não se dá por imitação, mas por um ato de criação. É o impensado que ao ser pensado pode conferir originalidade ou identidade ao pensar filosófico. Porém, a originalidade da filosofia não é fruto da genialidade de um indivíduo (como poderia supor uma teoria romântica do gênio), mas do árduo trabalho do pensamento reflexivo que se expressa num indivíduo, mas que é sempre social, cultural e historicamente situado. 

Se a filosofia tem uma história, é porque o pensamento  tem uma dimensão histórica – está sempre situado no tempo e no espaço. O ato de filosofar é sempre atual, porque pretende compreender os desafios do tempo presente, sem, contudo, ignorar o (seu) passado e os apelos do futuro. Como diz Descartes (nas Regulae), não nos tornaremos filósofos por conhecer as ideias de outros filósofos, mas se formos capazes de formar um juízo crítico sobre o que disseram. 

No Brasil, apesar de identificarmos alguns pretensos filósofos, não há consenso nem evidência teórica sobre a originalidade de suas atividades intelectuais. É fora de dúvida que existem entre nós grandes professores, comentadores e historiadores da filosofia, porém, parece incerta ou controversa a questão de se saber se existem filósofos brasileiros ou qual seria o autor e a obra que constituiriam o marco inaugural da filosofia no Brasil. 

O estudo meticuloso e exegético das obras filosóficas dos autores consagrados pela tradição, assim como a defesa apologética de suas teses parece ter sido para muitos intelectuais a razão de existir da atividade filosófica entre nós. A condição de subserviência de nosso pensamento à história da filosofia tem-se revelado sob a forma de uma “filosofia menor” em contraste com uma “filosofia maior” (autoral). Ora, a produção de um pensamento original (autoral) é fruto da inventividade e da autonomia intelectual do filósofo. Neste sentido, o pensar filosófico se constitui por contraposição; se manifesta e se desenvolve como resistência crítica contra outro pensamento. Daí dizer que todo pensamento filosófico, quer seja de matriz europeia ou ancestral, se constitui num movimento de ruptura com uma tradição de pensamento – instaurando um novo recomeço na história das ideias filosóficas. 

Ora, em nossa história, só recentemente a filosofia deixou de ser um “deleite intelectual” – um privilégio de poucos para ser um instrumento de formação e de emancipação intelectual. Dentre os múltiplos fatores que poderíamos identificar como responsáveis pela situação em que se encontra a filosofia entre nós, pode-se dizer que a herança colonial por ter implantado um pensamento postiço – sobreposto à nossa realidade, assim como a institucionalização universitária da filosofia por ter sucumbido à lógica da especialização do pensamento  (expressa na exegese textual) e a tímida presença e intervenção na esfera pública poderiam explicar, em grande medida, a ausência de originalidade ou o suposto atraso da filosofia no Brasil. 

A colonização foi um processo de conquista, dominação e subjugação tanto de nossos corpos quanto de nossas mentes. Ao invés de praticarmos uma filosofia sub specie temporis, seguimos importando e transplantando ideias filosóficas sem confronto e interlocução crítica com nossa realidade. O pensamento de “segunda mão” – o   pensamento já pensado tem sido para muitos intelectuais a única fonte e o limite intransponível do próprio pensamento. Historicamente, o Brasil tem sido o não-lugar da filosofia. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) e Roberto Schwarz (As ideias fora do lugar), somos desterrados em nossa própria terra; somos estrangeiros em nosso próprio país, porque nosso pensamento não foi pensado por nós.

O processo de colonização se fez acompanhar de dispositivos de dominação econômica, política, cultural, educacional e ideológica. O caráter hierárquico e desigual da sociedade brasileira, o legado da escravidão, o Estado autoritário e a formação da nação brasileira não têm se constituído num verdadeiro problema para a filosofia no Brasil. Por isso, desafiar o establishment – a ordem estabelecida e as estruturas de poder, é um imperativo filosófico. 

Enquanto as artes, a história, a sociologia e a antropologia cultural nos legaram inúmeras obras e autores, a filosofia praticada no Brasil é acusada de não ser autoral, porque permanece indiferente frente nossas próprias origens. Portanto, parece imprescindível de(s)colonizar o pensamento; compreender as possibilidades e os limites de nossa herança cultural (dos povos ancestrais e dos colonizadores) como um problema a ser formulado filosoficamente. A protofilosofia que aqui existe poderá no futuro tornar-se uma filosofia com traços originais desde que inventemos uma nova forma de conceber o exercício da filosofia. Necessitamos de uma filosofia inculturada e aculturada, se quisermos instaurar uma escola de pensamento. Assim, somente quando formos capazes de superar o mainstream filosófico que nos aprisiona ao passado e à razão ornamental (tal como diz Roberto Gomes em Crítica da razão tupiniquim) teremos condições de fazer filosofia ou de filosofar.  
 

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