Filosofia desenraizada: uma resposta a Chitolina

Marcelo Vinicius Miranda Barros

Doutorando em Filosofia pela UFBA; membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea e do GT Pensamento Filosófico Brasileiro da ANPOF

30/06/2022 • Coluna ANPOF

Em linhas gerais, um recente texto da coluna da Anpof, intitulado “Filosofia desenraizada: um vício de origem”, do Prof. Dr. Claudinei Luis Chitolina, revive questões já discutidas há tempos, por exemplo, pelos Prof. Dr. José Crisóstomo, Prof. Dr. Julio Cabrera, Prof. Dr. Murilo Seabra, dentre outros, a respeito do fazer filosófico no Brasil, que inquietou e, pelo visto, ainda inquieta o mundo acadêmico de filosofia. Chitolina coloca em xeque a possibilidade de existir pensadores brasileiros com ideias próprias que reflitam originalmente sobre questões atuais, e não apenas advogados de costumes filosóficos convencionais.

Chitolina duvida realmente de que existam filósofos brasileiros, já que ainda somos colonizados. Ele chega a afirmar que “nosso vício de origem – a admiração pelo estrangeiro e o consequente sentimento de inferioridade fez com que produzíssemos uma filosofia sem raízes culturais, irrelevante ou insignificante para o debate público e para os destinos da sociedade brasileira”[1]. Mas como ele chega a essa conclusão de que produzimos uma filosofia irrelevante, insignificante para o nosso debate público e destino social brasileiro? Será que ele já teve contato, por exemplo, com as obras do filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger? Será que já leu algo do também filósofo Rodrigo Ornelas, que faz uma aproximação Stirner-Oswald de Andrade no seu trabalho “Dialética, antropofagia, Modernismo: por uma filosofia da criação e do desenvolvimento”? Será que estamos tão desprotegidos assim hoje em dia no que diz respeito ao fazer filosófico de(s)colonizado, como quer Chitolina?

Mais um exemplo é a filosofia de José Crisóstomo. Em 2001, ele publicou A Filosofia como Coisa Civil, texto que veio a integrar, anos depois, a coletânea A Filosofia Entre Nós (Unijuí, 2005), escrita a oito mãos com Ernst Tugendhat, Oswaldo Porchat e Renato Janine Ribeiro [2]. O conceito de Coisa civil, em Crisóstomo, grosso modo, refere-se a um filosofar que contrasta filosofia enquanto sistemas metafísicos proferidos por sábios com acesso privilegiado ao real – o modelo que o autor debocha chamando de “ancien régime”.

Será mesmo que a “nossa prática filosófica tem permanecido, em grande medida, no plano da universalidade abstrata (idealidade), ao invés de refletirmos sobre nossa realidade” [3], como quer Chitolina? Basta uma olhadela no conceito de Coisa civil em Crisóstomo com seu materialismo prático-poiético. Podemos até considerar quando Chitolina afirma “em grande medida” ao que se refere ao academicismo, mas isso não nos parece apropriado para o fazer filosófico brasileiro.

Em outro momento de seu texto, Chitolina segue afirmando que “é preciso pensar não apenas com os nossos mestres, mas contra eles” [4]. Estranha afirmação de quem se valeu, o tempo todo, de filósofos europeus: praticamente a cada parágrafo citava Schopenhauer, Kant, Nietzsche, Descartes, etc. e concordava com eles. Daí, citando e concordando com Descartes, Chitolina nos diz que “não tornaremos filósofos por conhecer as ideias de outros filósofos, mas se formos capazes de formar um juízo crítico sobre o que disseram” [5]. Embora, ao que me parece, Chitolina não busque ser filósofo, o seu texto dito crítico não cai bem com a relação forma-conteúdo, isto é, Chitolina nos incita a ser crítico com os filósofos, mas ele se apoia passivamente em filósofos para dizer que devemos ser críticos perante a estes se quisermos fazer um “trabalho do pensamento reflexivo” [6]. Antes de ser crítico com fazer filosófico brasileiro, ele deveria ser crítico com a forma e com o conteúdo de seu próprio texto. Para isso, não precisamos fazer filosofia. É uma questão mesmo de cuidado com o argumento. O teor filosófico repousa também sobre a linguagem, no sentido amplo do termo.

Outro posicionamento de Chitolina é de que a filosofia praticada no Brasil é acusada de não ser autoral, porque permanece indiferente frente as nossas próprias origens. É o que ele chama de “filosofia desenraizada”. Isso nos causa novamente estranheza, pois, para ser um filósofo brasileiro, basta ser brasileiro e produzir um pensamento original que não nos seja estranho. Unger está impregnado de Brasil (tem muito livro sobre o Brasil, inclusive, e não precisaria escrever sobre o Brasil para ser um filósofo brasileiro). Além disso, embora Chitolina critique filósofos não voltados a sua origem, paradoxalmente ele acaba utilizando filósofos que não se retrocediam as suas origens, e nem por isso o vejamos também questionar tais filósofos. É o caso, por exemplo, de Descartes, que Chitolina cita em seu texto. Descartes não escreveu sobre a França, se sim, este não é um texto mais importante. Leibniz também não escreveu sobre seu país – da maneira que deseja Chitolina –, e escreveu em várias línguas, sobretudo em latim, francês e alemão (o alemão era até considerado uma língua bárbara). Contudo, são filósofos franceses e alemães, respectivamente. Fu-Kiau escreveu em inglês e é reconhecido como filósofo congolês. Newton da Costa é um dos filósofos brasileiros mais reconhecidos internacionalmente com sua formulação da lógica paraconsistente. Ele não escreve sobre a nossa origem. É relevante se voltar as suas origens, mas nenhum filósofo deixa de ser filósofo se não seguir essa “recomendação” de Chitolina.

Quando também Chitolina nos diz que “é preciso pensar não apenas com os nossos mestres, mas contra eles” [7], coisa que, para ele, não fazemos no Brasil, com efeito, não fazemos filosofia, então, indicamos a Chitolina, se caso não tenha lido, a obra de 720 páginas intitulada Mal-Estar e Moralidade (UnB, 2018), do filósofo Julio Cabrera, que traz uma filosofia ético-negativa de reflexão moral, na qual desenvolve seu conceito de “inabilitação moral”. Cabrera defronta-se também com filósofos canônicos, como Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, Kant, dentre outros.

Ao perpassar por diversos filósofos, Cabrera se volta ao Existencialismo, especialmente ao pensamento de Beauvoir e ao de Sartre. O Existencialismo dos anos 40 e 60 apresentou uma vívida descrição da condição humana, mas sempre enfrentou problemas na hora de tentar a formulação de uma moral. Cabrera, então, nos diz que o Existencialismo esbarrou em dificuldades porque, após a sua realista e estarrecedora descrição da condição humana, ainda pensava em formular algum tipo de ética afirmativa (pensemos, por exemplo, num livro como Por uma Moral da Ambiguidade, de Beauvoir) [8]. Nas suas 720 páginas, Cabrera não hesita em discutir sobre a Ética e sua impossibilidade, considerada o calcanhar de Aquiles de muitos filósofos.

Por fim, Chitolina afirma que “no Brasil, apesar de identificarmos alguns pretensos filósofos, não há consenso nem evidência teórica sobre a originalidade de suas atividades intelectuais”. Mas, como ele mesmo diz, se estamos totalmente alienados pelo processo de colonização, então, concordamos com Cabrera e Murilo Seabra: “os leitores de filosofia teriam que ser capazes, depois de anos e anos de ‘formatação’ acadêmica, de mudar os critérios usuais de avaliação. Se aplicarem os critérios vigentes, qualquer produção autoral será vista como ‘má filosofia’ e rejeitada” [9]. Se Chitolina afirma todas essas limitações, se for realmente autoral, uma obra parecerá inevitavelmente não ter “qualidade”, mas fugir da “excelência” se torna um requisito do autoral. Com que critério poderemos falar de consenso? E como medir a originalidade de um texto? Porque pontos de confluências existem até nos livros mais clássicos, mas nem por isso esses livros falam da mesma coisa. Penso que, em filosofia, isso fala mais sobre o leitor do que da obra lida. Agora, depois de tantos brasileiros, cito também Nietzsche: “a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual – foi o que criou todo fundamento para a lógica” [10]. O que realmente importa numa obra teórica é a sua abordagem. As semelhanças de opinião não podem ter o mesmo peso que as semelhanças de abordagem.

Em suma, nos limites naturais desta coluna, o que Chitolina tenta fazer são postulados para que a filosofia brasileira se apresente como impossibilidade, mas o que vimos foram postulados lógicos antecedendo à realidade.


NOTAS

[1] CHITOLINA, C, L. (2022). Filosofia desenraizada: um vício de origem. Coluna ANPOF. Disponível em <https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/filosofia-desenraizada-um-vicio-de-origem>. Acesso em 09/06/2022.
[2] MEDEIROS, T. (2021). A Filosofia de José Crisóstomo de Souza. Coluna ANPOF. Disponível em <https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/a-filosofia-de-jose-crisostomo-de-souza>. Acesso em 09/06/2022.
[3]  CHITOLINA, C, L. (2022). Filosofia desenraizada: um vício de origem. Coluna ANPOF. Disponível em <https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/filosofia-desenraizada-um-vicio-de-origem>. Acesso em 09/06/2022.
[4] CHITOLINA, C, L.  (2022). Filosofia desenraizada: um vício de origem. Coluna ANPOF. Disponível em <https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/filosofia-desenraizada-um-vicio-de-origem>. Acesso em 09/06/2022.
[5] CHITOLINA, C, L.  (2022). Filosofia desenraizada: um vício de origem. Coluna ANPOF. Disponível em <https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/filosofia-desenraizada-um-vicio-de-origem>. Acesso em 09/06/2022.
[6] CHITOLINA, C, L.  (2022). Filosofia desenraizada: um vício de origem. Coluna ANPOF. Disponível em <https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/filosofia-desenraizada-um-vicio-de-origem>. Acesso em 09/06/2022.
[7] CHITOLINA, C, L. (2022). Filosofia desenraizada: um vício de origem. Coluna ANPOF. Disponível em <https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/filosofia-desenraizada-um-vicio-de-origem>. Acesso em 09/06/2022.
[8] CABRERA, J. Mal-Estar e Moralidade: situação humana, ética e procriação responsável. Brasília: UnB, 2018.
[9] CABRERA, J. "Comenta-me ou te devoro. O que um filósofo vê quando abre a janela". In.: SEABRA, M. Metafilosofia. Brasília: Resistência, 2015, p. 16.
[10] NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, §111, p. 130.
 

 

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