Filosofia e revolução
Breno Augusto da Costa
Professor (IFPR) e doutorando em Filosofia (UFU)
03/07/2023 • Coluna ANPOF
Existem vários tipos de filosofia. Este texto, porém, não pretende abordar as distinções entre a) o filosofar centrado na história da filosofia, b) o filosofar inspirado na lógica (é o que faz a filosofia analítica), ou c) o filosofar ancorado na experiência humana (conforme sugerido em um ensaio por Ivan Domingues [1]), ou d) o filosofar centrado na libertação, entendida esta a partir de um esclarecimento categorial crítico (tal como tentei sistematizar no último Encontro da ANPOF). Trata-se em realidade de levar em consideração a intenção da produção filosófica ante seus suportes sociais e históricos.
Dentre as várias possibilidades de intenção de uma filosofia, duas podem ser contrapostas: as filosofias conservadoras, que elaboram uma visão de mundo que termina por sustentar aquilo que é presente; e as filosofias revolucionárias, que, lançando mão ou não do termo revolução, proclamam a necessidade de se alterar a realidade vigente.
Neste último campo insere-se a obra de um autor que tem se destacado nos últimos anos. Murilo Seabra é doutor em filosofia pela Universidade La Trobe e fez mestrado e graduação também em filosofia na Universidade de Brasília (UnB). De suas contribuições à filosofia da linguagem, vale destacar o conceito de eletropolítica, que parte da intuição de que existem palavras eletropoliticamente carregadas e que utilizá-las necessariamente drena as cargas de seus opostos. Assim, “filosofia francesa(+)” e “filosofia alemã(+)” são expressões de carga positiva (assim como “coerente(+)”, “profundo(+)” e “universal(+)”), enquanto “filosofia brasileira(-)” e “filosofia africana(-)” têm uma carga fortemente negativa (assim como “incoerente(-)”, “superficial(-)” e “nacional(-)”). Essa concepção surge em conexão com suas reflexões sobre a leitura, entendida por ele como uma atividade por meio da qual estruturas e hierarquias sociopolíticas são exercidas, e reforçadas e com o que ele chama de “oftalmopolítica”, que chama a atenção para ranhuras retinianas que modelam a percepção [2].
Esse ponto pode ser ilustrado por meio da consideração da tese de que “a direita não pensa”, que o autor defende no livro Oftalmopolítica. Seria um disparate? Mais uma insensatez filosófica que brotou do solo brasileiro? Talvez sim, talvez não, pois é evidente que a direita pensa. O fato de que não concordamos com os argumentos usados pela direita para legalizar a mineração em terras indígenas, reduzir a maioridade penal ou controlar os corpos das mulheres não significa que a direita não pensa, apenas que seus argumentos estão equivocados. Então a tese do autor parece claramente exagerada e intolerante.
Contudo, depois de argumentar longamente a favor da tese de que “a direita não pensa”, ele subitamente traz à tona a tese heideggeriana de que “a ciência não pensa”, tese que via de regra aceitamos como profunda e reveladora. Mas quando examinadas as duas teses, verificamos que elas são formalmente idênticas. A única diferença é que a primeira desmascara a esfera política e a segunda a esfera epistêmica. Essencialmente, porém, ambas dizem a mesma coisa, a saber, que há muitas pessoas aparentemente competentes que, todavia, não estão exercendo de maneira adequada a faculdade de pensar.
Ao mostrar nossa receptividade à tese de que “a ciência não pensa” e nossa hostilidade à tese de “a direita não pensa”, o que Murilo Seabra está fazendo é trazer à tona nossas “ranhuras retinianas”. Apesar de serem as duas igualmente plausíveis (ou igualmente implausíveis), ele mostra que estamos muito mais dispostos a aceitar a tese heideggeriana. Afinal, trata-se de uma tese de Heidegger(+). Assim, ela tende a ser percebida como profunda(+), incisiva(+), original(+) e até mesmo revolucionária(+). Já a tese de que “a direita não pensa”, proposta um mero brasileiro(-), é percebida como simplória(-), obtusa(-), superficial(-) e reacionária(-). As cargas positivas associadas ao nome de Heidegger e à filosofia alemã como um todo contaminam nossa percepção de “a ciência não pensa”, enquanto as cargas negativas associadas ao nome de Murilo Seabra e à filosofia brasileira como um todo contaminam nossa percepção de “a direita não pensa”. A validade do que se fala não depende apenas do conteúdo falado, mas também do sujeito que fala.
Então a razão e a sua contraparte subjetiva, a faculdade do raciocínio, não estão imunes aos fenômenos “eletropolíticos” ou “indexopolíticos”, pois índices sociais como gênero, cor da pele, nacionalidade e classe econômica claramente afetam nossos julgamentos e o próprio ato de ler, que não é tão neutro e passivo como pensamos. Ler um filósofo brasileiro e um filósofo europeu ou estadunidense, claro está, são ações que não têm a mesma carga eletropolítica. Um autor brasileiro de sobrenome Costa, por exemplo, receberia o mesmo tratamento por parte da comunidade filosófica brasileira que um polonês de sobrenome Kostovisk? Um dos expoentes da lógica paraconsistente, o brasileiro Newton da Costa, acredita que não. Ele conta que primeiro ganhou reconhecimento na França (no Brasil era chamado de “maluco”) e só depois foi tratado seriamente em solo nacional.
Levando este fato em consideração, parece que jamais pode haver um pensador brasileiro(-) original(+), porque, por mais original(+) que seja, ele continuará sendo brasileiro(-). O problema da expressão “filosofia(+) brasileira(-)” é que as duas são eletropoliticamente antagônicas.
Em uma de suas últimas publicações, um artigo tendo como coautores Luke Prendergast, Gabriel Antunes e Laura Tolton, Murilo Seabra testou a hipótese de existência de um viés de nacionalidade entre os membros da comunidade filosófica brasileira. Os dados coletados sugerem que é muito mais provável que um texto filosófico seja considerado epistemicamente valioso quando assinado por um filósofo francês do que quando assinado por um filósofo brasileiro. Investigações futuras – e isso envolve necessariamente nossa comunidade – são necessárias para confirmar a pesquisa. É preciso também analisar o impacto de outros fatores, como raça e gênero, por exemplo, e esclarecer melhor outros possíveis vieses que a pesquisa traz em consideração. Entretanto, segue significativo que Seabra e seus colabores tenham diagnosticado um problema no próprio funcionamento da razão.
A produção de Murilo Seabra e de tantos outros e outras têm minado a segurança dos grupos hegemônicos da comunidade filosófica brasileira. Mesmo que boa parte dela se considere progressista, a filosofia enquanto atividade institucionalizada ou como disciplina acadêmica termina por contradizer-se a si mesma. Isto pois, repetindo o autor, tomada como exercício tenaz e intransigente de pensamento, a filosofia não pode ser racista, sexista, classista ou imperialista. É dessa contradição – não uma contradição formal, mas de forças culturais, sociais e políticas antagônicas – entre a filosofia institucionalizada e a filosofia como exercício tenaz e intransigente de pensamento que emerge a possibilidade de uma alteração revolucionária de nossa realidade filosófica. Ora, Murilo Seabra encontra-se diante não de um conjunto desarmado e que espera se concretizar a alteração que ele aventura – no sentido etimológico do termo –, mas de uma poderosa máquina epistemicida. Por sua vez, o poderoso grupo em algum momento sairá para dar combate e encontrará diante de si um campo minado. Nesse momento é vital cuidar das várias ranhuras retinianas que prejudicam a leitura da realidade.
[1] O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea. Edições Loyola, 2017.
[2] Oftalmopolítica: um problema com a visão da filosofia. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2021.