Filosofia, modo de usar.

Alexandre de Oliveira Torres Carrasco

Professor do Departamento de Filosofia UNIFESP

23/05/2019 • Coluna ANPOF

Não faz muito tempo que a filosofia entre nós tinha algo de excêntrico. Faltava-lhe não sei o que de ordinário, de cotidiano, de prosaico. Tudo também se resume a entender quem seria esse “nós”, também um dos “nós” da questão, mas sigamos. O fato é que, repentinamente, pelo menos para efeito retórico, parece que não só, deixo aqui o palpite, a filosofia ou a “Filosofia” foi alçada à condição de inimiga, de vilã ou de notório instrumento do mal. Há nisso um inesperado reconhecimento que, de um jeito ou de outro, pega todos nós de surpresa, e até mesmo lisonjeia, reconheçamos. Acostumados como estávamos a certa irrelevância, agora temos que lidar com as injúrias dessa fama ou má fama. Claro que a surpresa decorre se colocarmos o juízo em perspectiva, não seria o caso, por óbvio, se considerarmos o emissor de tal juízo. O que mudou desde então, digamos, desde vinte anos – uso as medidas de minha própria formação, entre graduação, mestrado e doutorado –, o que nos fez passar do anonimato inofensivo ao primeiro plano das preocupações dos atuais donos do governo, e até anteontem pelo menos, donos também de muitas opiniões?

A resposta mais óbvia, a que seguiria pela mão o senso comum, seria a mesma que foi dada de viés pelos próceres do atual governo: multiplicamo-nos demais, e essa infestação de filosofia, esse excesso de filosofia vem corroendo as contas públicas. Verdade e mentira somados, em geral, dá em nova mentira. Não surpreende, portanto, a estratégia. Deixando de lado o peso irrisório que temos no orçamento do Ministério da Educação, nós e todas as ciências humanas, há um grão de verdade no sofisma: realmente nos multiplicamos e isso, com custo real ou irrisório, seria o verdadeiro incômodo.

Agora podemos qualificar melhor do que se trata: o problema não é “a” filosofia, o problema são os professores de filosofia, os estudantes de filosofia, os pesquisadores em filosofia, a nossa comunidade formal, esses sim, no geral, ajudando a aumentar o déficit público e o déficit da previdência. Aliás, algum desimportante comentarista da rede mundial já vaticinou: para aprender filosofia, não se precisa de professores. Talvez não se precise de livros, nem de uma comunidade organizando certo campo do conhecimento, nem do que vulgarmente se chama tradição. Talvez não se precise de nada ou quase, basta pensar por aí. E assim estamos: a ingenuidade intelectual mais imediata, desarmada e caricata, a que não resistiria a uma brisa de fim de tarde, tem como revestimento o mais intransigente dos autoritarismos. Normalmente, chamamos isso de dogmatismo, que é igualmente uma forma de autoritarismo, no geral, um pouco mais sofisticado. Provavelmente não chegue a isso.

O juízo em toda sua infeliz extensão vem, porém, enormemente a calhar para os tempos atuais, pois é de uma clareza pré-moderna irrefutável. É justamente disso que se trata, talvez com um e outro complicador para o nosso caso, o brasileiro, pois há de considerar que a regressão entre nós tem sempre um ar de família, um reencontro consigo, quase um almoço de família, e agora além disso, como o momento faz a oportunidade, tem porta vozes dispostos a muita ladainha, da pior, pode-se imaginar.

Aí está toda a questão, essa onda antimoderna que a cada trinta, trinta e cinco anos arrebenta nos litorais brasileiros. Para qualificá-la e reenquadrá-la ao nosso caso, vale uma historieta filosófica, que começa mais ou menos assim: não há filosofia senão por meio dos professores de filosofia, de estudantes de filosofia, de pesquisadores em filosofia. Curiosamente, e contra toda a aparência, a figura do “professor de filosofia”, e seu correlato imediato, o estudante de filosofia, é uma figura moderna por excelência, consequência de uma série de eventos de alcance mundial, que medeia a passagem do século XVIII ao século XIX, e entre eles, a Revolução Francesa. Ora, será nessa conturbada passagem da história europeia, a reverberar mundialmente, que a filosofia, aqui mero índice, submete-se a uma mudança de largo alcance, e para tal indicamos dois marcos: a reforma educacional napoleônica, que cria as escolas normais, e a Crítica da Razão Pura, de Kant. Será nessa quadra e na conjugação desses elementos tão heteróclitos na aparência que a filosofia, ao tornar-se algo como uma carreira de estado, isto é, redimensionando as medidas de sua transmissão e de seu reconhecimento ao programa e aos limites do ensino público, muda drasticamente. Passa-se a ensinar filosofia, o que sempre se fez, mas em um sentido novo, moderno, eu insisto, e que se traduz na máxima kantiana, repetida a exaustão desde então, Â“não mais se trata de ensinar filosofia, e sim ensinar a filosofar”. Nossos antecessores passarão todo o século XIX debatendo essa mudança e seus alcances e, de fato, ajustando-se prática e teoricamente a filosofia e seu ânimo ao lugar ultra moderno que a marcha material do mundo a ela destinou. Isso é história contada e repassada, é bom reforçar. Dá-se, porém, essa história, sob a cifra dessa figura excêntrica, a do professor de filosofia. Também esse é um dos sintomas do fim da metafísica, tão agudamente capturado por Kant, por mais problemático que o tema seja e seja o debate de sua posteridade. Não só esse. Kant, observador privilegiado daquele momento chave, dá-se conta que todo um conjunto de significações, de sentidos que serviam de instrumento de investigação corrente, digamos, esses conjuntos de sentidos simplesmente deixaram de operar, deixaram “de fazer sentido” como deviam, e passaram a ser algo como uma “loquacidade trivial”, como ele diz textualmente nos primeiros parágrafos de seus Prolegômenos .

Quando ele nos fala do fim da metafísica, assim me parece, da emergência necessária do professor de filosofia, isto é, da filosofia como um saber especializado que exige uma prática metodológica específica e não trivial, ele igualmente chama atenção ao fim da metafísica que significa, como antecipava, que ela já não faz sentido (como antes, completo), que enfim, como subproduto da volta no fuso da experiência moderna, seu ônus, teríamos que abrir mão de uma série de significações que no limite já não diziam coisa nenhuma, não mais operavam, mas mantinham certa vocação de ilusão dando a impressão que funcionam. Evidentemente que Kant não olha para trás e vê Descartes, Leibniz, Espinosa, por exemplo, como notórios embusteiros, pelo contrário. Ele olha, sim, a atualidade – como olhamos, aliás – e vê gente que, ao falar ao modo de Descartes, Leibniz e Espinosa não dizem “nada com nada”, vendem uma encantadora fumaça engarrafada. Uma porção do discurso parece ter se esterilizado, ter perdido repentinamente a substância. O nome fantasia desse discurso é “metafísica”. Mas, a depender do mercado, do vendedor e do comprador, há que se ajustar os nomes. Eis o último elemento da nossa anedota.

Sem entrar em toda a complexidade técnica e historiográfica do problema, resumamos: quem é o professor de filosofia, o aluno de filosofia, o pesquisador em filosofia? Ele é quem salvaguarda um tipo específico de crítica do discurso, há controvérsias, mas que só podem ser resolvidas por mais crítica do discurso, e por exigência dessa tarefa, abre mão de um objeto específico, pois, dada a mudança geológica na ordem das coisas (passagem do século XVIII ao XIX), uma porção corrente do discurso (poderíamos completar, do discurso filosófico, mas talvez seja mais grave do que isso) se fetichizou, tornou-se um tipo específico de fantasmagoria que assombra o são significado das coisas e além do mais se apresenta com a máscara (segundo Kant) de um antigo gênero nobre, a metafísica.

Essa atividade especializada que funda essa famigerada figura, a do professor de filosofia, a da filosofia na sala de aula, ela é desde sua fundação essencialmente anti-dogmática. O professor de filosofia é o anti-doutrinador, por excelência, pois a disciplina funda-se exatamente contra as escolas e as doutrinas, as Â“metafísicas”, ele se institui por meio dessa oposição. Como nos é difícil olhar para nossa prática, diligentemente constituída como anti-dogmática e aceitar o adjetivo fácil de “doutrinadores”. E a questão dessa questão é esta: por que teríamos que nos haver com o nosso contrário? Ocorre que ele não é anti- doutrinador em relação a própria filosofia, ele é anti-doutrinador em relação a todas as formas de dogmatismo, uma maneira de dizer, contra toda essa porção encantada e fantasmagórica do discurso, e eis que temo uma pista.

Se essa é nossa quase condição de possiblidade, evidentemente que optei pela versão otimista e edificante da coisa toda, e nestes tempo, convenhamos, não me parece pecado mortal. Podemos voltar agora às notícias do dia.

É sintomático que o governo regressivo a que estamos sujeitos hoje se disponha com tanto vigor atacar não “a” filosofia, que pode ser qualquer coisa, inclusive a figura histriónica do filósofo eletrônico que hoje ganhou a notoriedade que lhe convém, mas a prática moderna do ensino de filosofia e pesquisa em filosofia, para o bem e para o mal, herdeira daquela tradição “imemorial” de que fala Adorno, justamente no que ela tem, como projeto, de mais antidogmático: não ensinar “nada”, isto é, não doutrinar, abster-se de ter um “objeto” para melhor experimentar as variações e oscilações de um juízo antidogmático. Ao mesmo tempo, esse mesmo governo, do ponto de vista mais dogmático que se possa imaginar, arrimando-se naqueles que, sem maiores consequências, chamaríamos de os atuais vendedores de metafísica de toda ordem – coaches, “especialistas” motivacionais, eruditos de almanaque, pregadores do próprio narcisismo - dispõe-se a atacar continuamente o ensino de filosofia no momento em que ele ensaia se universalizar.

Há, parece-me, uma intuição profunda e reveladora nisso tudo, eu quase ousaria dizer, uma intuição profunda e brasileira, que mostra sem querer o sentido moderno do professor e pesquisador em filosofia, da filosofia como disciplina formal, de nós mesmo na periferia do ocidente – o que somos, em parte – e que tem a ver com o quanto somos ou não modernos, nós, a sociedade brasileira, sempre em busca da permanente modernização. Aqui atesto extemporaneamente, a título de polêmica: sempre fomos modernos, sempre fomos supermodernos.

Ocorre que não no sentido corrente e dominante de moderno, no sentido que nossos porta-vozes conectados a mil aparatos esperariam que fôssemos. A hipótese de que sempre fomos modernos, em outro sentido, explicaria muito coisa e começa levando em conta que a essência do nosso moderno está no que não conseguimos superar. Seria como se esse modo de vida escravocrata, isso mesmo, fosse o nosso limiar moderno – por isso nunca o ultrapassamos, ele não está no nosso passado, ele está no nosso futuro – e o escravismo, nossa metafísica sem crítica, o marco e a marca de nós mesmo, de nossa familiaridade. De algum modo, mediado e sincopado, assistimos ao seu retorno na forma de um discurso que aparentemente seria uma variação retórica da violência e do discurso como violência, mas, tenho a impressão de que não seja apenas isso.

Sob essa virulência aparentemente de teatro, há um tipo de identidade que se reatualiza e nesse processo descobre-se tão infensa à essa nossa filosofia miúda de cada dia.

Por contraste, há uma verdade inesperada no horror ao ensino de filosofia, que vem do fato de quanto ele nos desmente: ele nos faria “menos” brasileiros, menos regressivos, menos modernos à nossa maneira familiar de sermos modernos. Modernos de outra maneira, porém, isso interessa pouco. Interessa, agora, muito mais, saber o quanto o anti-dogmatismo que nos constitui, em suas variadas versões, melhor qualifica essa espécie de repulsa identitária recíproca: não nos reencontramos no discurso que nos repulsa, nem ele pode se encontrar conosco.

A virulência da crítica ao ensino da filosofia e à figura chave do professor de filosofia vem daí: não podemos deixar de ser brasileiros, nos dizem aqueles que reclamam do artificialismo postiço de “nada” ensinar, e na forma mediada de ensinar a “nada” aderir, descobre-se o quando é urgente ensinar e exercitar justamente esse nada.

A verdadeira filosofia ri da filosofia, já ensinou um mestre entre nós. Não é bem o tempo do riso, nem o da graça. Não significa que não seja o tempo da filosofia, ou que o tempo da filosofia passou. O nosso riso, o da filosofia, se dá de muitas formas, conforme tempo, modo e lugar. Para a ocasião que enfrentamos, digamos finalmente o seguinte: “não mais que um arabesco,/ apenas um arabesco/abraça as coisas, sem reduzi-las.” - Como um riso.