Filosofia política, Liberdade Produtiva e Tecnologia Blockchain

Marcelo de Almeida Silva

Doutor em Filosofia pela UFRJ

01/07/2021 • Coluna ANPOF

No contexto da relação entre tecnologia e economia, as redes blockchain podem ser consideradas o carro chefe da inovação. Tal tecnologia permite que usuários armazenem e validem dados de forma descentralizada com privacidade, segurança, transparência e agilidade. Em termos simples, é como se você pudesse dividir a informação em vários pedaços e guardar nas casas de várias pessoas sem que cada uma soubesse qual parte está guardando, e, apenas você tivesse a chave que transforma os pedaços em uma só informação. Em termos ainda mais simples: uma alternativa ao atual sistema bancário e cartorial. Tal tecnologia possibilitou um ambiente econômico caracterizado pela descentralização e democratização da criação de instituições financeiras e moedas (as criptomoedas). Isso tudo começou em 2007 e se tornou um mercado com valor acima de quinze trilhões de reais acompanhado pela Bloomberg (maior serviço de informações financeiras do mundo), recebendo investimentos de fundos como Bridgewater que  sozinho administra mais de 140 bilhões de dólares.

Pelo seu potencial, tal ambiente se tornou um novo front da atual guerra fria. Pelo pioneirismo, a China assumiu a liderança sendo responsável por dois terços da validação das transações dentro da maior rede blockchain. Isso significa que a China controla um mercado onde está retido o equivalente a 5,4 trilhões de reais (poderíamos mencionar a participação da China em outras blockchains como Ethereum e Cardano que reuniriam aproximadamente outros dez trilhões).

Durante a administração de Donald Trump, a resposta dos EUA à supremacia chinesa nesta área se resumia a acusações públicas. Com Biden, as palavras deram lugar às ações e hoje articulam-se acordos globais para conter o predomínio chinês.

O relatório Bloomberg Crypto Outlook (Junho, 2021) afirma que uma vantagem dos EUA  é o fato de que algumas das maiores stablecoins (criptomoedas criadas para espelhar, dentro das blockchains, o valor de moedas fiduciárias) terem lastro no dólar. A causa provável para esse fato é a ausência de repressão ao desenvolvimento de aplicações baseadas na tecnologia blockchain por parte dos cidadãos estadunidenses. Tal ausência teria transformado os EUA em um ambiente fértil para inovação neste contexto, e hoje a criptomoeda mais comercializada no mundo (o TetherUS) é lastreada no dólar. Se essa situação se consolidar no médio-longo prazo, os EUA assumirão a supremacia neste ambiente. Destes fatos podemos concluir que um tipo específico de liberdade civil (relacionada a produção) contribuiu para garantir aos EUA uma vantagem geopolítica que pode consolidar os EUA como protagonistas do câmbio global neste novo ambiente.

Qual a importância disso para a filosofia e para o Brasil?

Entre as raízes mais recentes do arranjo institucional brasileiro consta a influência das intuições internas à Doutrina Truman. Tais intuições, cunhadas por intelectuais como Philip Selznick, sinalizavam uma doutrina social pautada no anticomunismo e desconfiança em relação ao valor das liberdades civis.** A influência desta doutrina social se manifesta de forma especialmente explícita no Governo Bolsonaro.

Ao longo da Guerra Fria esta doutrina caracterizou o modus operandi da administração federal nos EUA. Mas, desde então, a sofisticação reflexiva e científica gerou novas intuições que demonstraram as vantagens estratégicas de cultivar alguns aspectos da  autonomia civil. A disputa entre tais intuições pode ser observada na coexistência entre um movimento de gradual expansão das liberdades civis e as denúncias de espionagem sobre seus próprios cidadãos.

Uma das formas de descrever tal conflito, no campo da teoria, seria contrapor o liberalismo anticomunista de Selznick aquele liberalismo civilista de John Rawls.

O que nos interessa especificamente é observar a relação entre uma forma de liberdade civil e a aceleração da inovação. Uma das possibilidades de leitura para tal evento é tomá-lo como um contraponto prático ao menosprezo que intelectuais como Philip Selznick relegam às liberdades civis. Mas nosso interesse vai além dessa demonstração. O ponto que pretendemos demonstrar demanda que vinculemos a liberdade civil que dá vantagem estratégica aos EUA (no contexto da tecnologia blockchain) a um tipo de liberdade que teve certo protagonismo na ascensão chinesa das últimas décadas.

Nos idos de 1998 um grupo empenhado na inovação no ambiente da tecnologia apresentou o conceito de ‘open source’ que designa um sistema de produção que dispensa restrições comerciais à reprodução, modificação e distribuição (em termos simples: são programas de computador que você usa sem pagar). Considerando que cada programa produz um bem pra toda comunidade, e não apenas para uma empresa, desenvolvedores tendem a contribuir com aprimoramentos de forma gratuita acelerando exponencialmente a oferta de aplicações. Tal dinâmica de produção serviu de gênese para muitas empresas que compõem o índice Nasdaq (ex: Google, Facebook, Microsoft, etc). Na China, o open source foi aprofundado como política de Estado abrangendo também a parte física dos dispositivos de forma que cidadãos chineses adquiriram um tipo de liberdade produtiva indisponível para cidadãos estadunidenses (ou de quaisquer outro país signatário dos acordos de proteção à propriedade intelectual e industrial). Tal liberdade fomentou a inovação tecnológica principalmente entre as década de 90 e 2010, período de ascensão chinesa à posição de potência global.

É possível observar dois tipos de liberdades, associadas à produção, que carregam condições de possibilidade para acelerar a inovação em diferentes arranjos institucionais. A centralidade da liberdade produtiva associada à inovação nos permite remeter a discussão àquela desenvolvida por Roberto Mangabeira Unger em seu texto ‘Economia do Conhecimento’ (2018). Ao caracterizar a prática produtiva mais avançada, Unger destaca a aproximação que tal prática possibilita entre a forma como imaginamos e a forma como produzimos. No entanto, o aprofundamento e democratização da economia do conhecimento só seria possível uma vez que deixássemos de tomar os arranjos institucionais disponíveis como pressupostos. Tida de forma isolada tal orientação pode soar abstrata, no entanto, devemos considerar que o contexto do surgimento de arranjos produtivos como o open source e blockchain têm como premissa a rejeição das restrições dos arranjos institucionais onde se desenvolveram.

Dispondo em um mesmo plano o impacto da liberdade produtiva no incremento da inovação e o caráter diverso das manifestações desta liberdade, somos instados a descrever tal liberdade e identificar seus paralelos no arranjo institucional (do Estado e Mercado) brasileiro.

Tal tema, se torna ainda mais interessante se considerarmos que diferente do open source (que implica em reestruturar toda abordagem da propriedade intelectual e industrial), a produção de aplicações no contexto da tecnologia blockchain demanda apenas um computador com capacidade média de processamento e conexão à internet. Segundo pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil, aqui residem 134 milhões de usuários da internet, dos quais 90% a acessam todos os dias. Resta posta a compatibilidade material, entre recursos necessários e disponíveis, que revela o potencial brasileiro para extrair o máximo deste campo ainda pouco explorado a nível global.

A partir desta compatibilidade é que surge a demanda, para a filosofia brasileira, de articular um sentido nacional de liberdade produtiva que possa servir de base à concepção de arranjos institucionais adequados à realização da virtude da economia do conhecimento, qual seja; a de engrandecer cada cidadão acima de sua circunstância.

[*] Informações relativas ao predomínio chinês e ao volume financeiro retido nas blockchains podem ser encontradas em sites especializados como Decrypt e Bloomberg, e, podem ser verificadas diretamente nos sites das próprias blockchains.

[**] A origem, natureza e a forma como tais intuições chegaram ao Brasil foram exploradas na minha tese de doutorado ‘A Estagnação Institucional das Democracias Liberais’.