Futebol, Neokantismo e Sexismo

Felipe G. A. Moreira

Doutor em Filosofia (University of Miami) e Pesquisador de pós-doutorado em Filosofia (Unesp)

16/02/2023 • Coluna ANPOF

Mês passado, um texto da colunista do UOL, Milly Lacombe, provocou reações acaloradas. Por exemplo, no programa, “Os Donos da Bola”, o ex-jogador de futebol e hoje comentarista, Neto, sugeriu que Lacombe fez uma “lacração”. O texto em questão propõe uma explicação para um fato. O fato é que 62% dos vinte e seis jogadores da Série A do Campeonato Brasileiro de 2022 consultados por uma pesquisa promovida pelo UOL no final do ano passado responderam que o melhor comentarista de 2022 foi o também ex-jogador de futebol e hoje comentarista, Pedrinho. A explicação desse fato proposta por Lacombe é que a “masculinidade tóxica e frágil no futebol” “simboliza” Pedrinho como um “macho-alfa” que “se destaca pela capacidade de liderar”. 

Tendo a crer que o texto de Lacombe não é desprovido de interesse filosófico. Afinal, uma interpretação razoável é que ele aponta ou ao menos pode ser regimentado com a ajuda de um vocabulário filosófico. Neokantiano é como esse vocabulário pode ser chamado porque ele se vale da seguinte metáfora: o patriarcado é como um véu que distorce a visão daquilo que existe ou pretensamente existe para além de qualquer véu. Isso é dizer, para colocar de modo não metafórico, que o patriarcado condiciona todas ou ao menos algumas apreensões da coisa-em-si. Essa última é aquela que sendo incondicionada, existe ou pretensamente existe para além de qualquer condição. 

Concedida a mencionada regimentação, alguns desafios podem ser trazidos para alguém que procura defender ou desenvolver a explicação de Lacombe num viés neokantiano.

O desafio 1 é definir de modo preciso o que é patriarcado. Por exemplo, mostrando o que é a relação de “simbolizar” algo. Mais: mostrando quais são as condições que fazem com que Pedrinho seja “simbolizado” como um macho-alfa, ao invés de algum outro comentarista. Notemos que, para tanto, não basta enfatizar que o corpo de Pedrinho é musculoso; mesmo que Pedrinho fosse o único comentarista com tal característica, diversos outros critérios para alguém ser um macho-alfa parecem relevantes. Tipo: estatura; idade; beleza; saldo bancário; poder; relação com alguma forma de imperialismo; fama; cor da pele; estado civil; formação acadêmica; gravidade do tom de voz; domínio das regras da lógica clássica; histórico de uso ou de ausência de uso de violência etc.

O desafio 2 é determinar exatamente à luz de critérios explicitamente articulados quais apreensões são condicionadas pelo patriarcado. Responder a esse desafio é explicitar se essas apreensões são aquelas de: todas as pessoas; todas as pessoas do Brasil; todos os jogadores de futebol; apenas aqueles do último Campeonato Brasileiro; todos os consultados pela mencionada pesquisa; apenas aqueles 62% que elegeram Pedrinho o melhor comentarista do campeonato em questão etc. 

O desafio 3 é explicitar a relação entre a condição colocada ou ao menos pretensamente colocada pelo patriarcado em relação a várias outras condições. Por exemplo, aquelas colocadas ou ao menos pretensamente colocada pelos “véus” da luta de classes, da nacionalidade, da cor da pele, do imperialismo de vanguarda dos EUA, dos princípios da lógica clássica, do medo do “cancelamento”, do conflito entre tendências igualitárias e libertárias; dos próprios valores feministas ou antissexistas etc.

O desafio 4 é articular uma visão razoável acerca da disputa ontológica sobre a existência da coisa-em-si. Trata-se, em outras palavras, de mostrar se essa coisa de fato existe ou se tudo que existe é condicionado de alguma maneira.

O desafio 5 é mostrar, em suma, porque a explicação de Lacombe seria mais persuasiva do que qualquer outra. Feito: Pedrinho despertou o afeto de muitos jogadores que se sensibilizaram com o fato da sua carreira ter sido marcada por diversas contusões. Mais: Pedrinho é de fato, como ele mesmo diz na sua resposta para Lacombe, alguém “gentil”, “amável”, “educado” e “generoso”. Ou ainda: os comentários de Pedrinho mostram que ele possui uma propriedade consideravelmente singular. A propriedade de ser um ex-jogador de futebol que tem o 2º Grau completo, fez diversos cursos como os de jornalismo e de gestão esportiva da CBF e tirou as licenças B e A de treinador da CBF. 

Não é impossível, creio eu, trazer vários outros desafios similares. Como é sabido, a distinção entre o que é condicionado e o incondicionado tem trazido variadas disputas. Isso desde que Immanuel Kant explicitamente a introduziu no século 18. Também não acredito que seja impossível responder racionalmente aos cinco desafios mencionados acima. Por exemplo, à luz dos textos do próprio Kant, dos seus intérpretes, de Angela Davis ou de uma autora mencionada no texto de Lacombe: Marilyn Frye. 

De todo jeito, resolver os mencionados cinco desafios não é nem uma tarefa fácil nem uma que me proponho aqui. O que me interessa mais é indicar que talvez mais interessante do que articular uma perspectiva neokantiana seja uma outra atitude próxima daquelas que eu propus em relação aos predicados, “ser colonizado” e “ser autoral”. Essa atitude é a de adotar uma abordagem predicativa que estabelece ou ao menos procura estabelecer um critério razoável para a atribuição de <Sexista> para algo. Feito: uma atitude; um poema; o eu-lírico de um poema; uma pessoa etc. Por <Sexista>, tomemos uma abreviação da expressão, “o predicado, ‘ser sexista’”. 

Por exemplo, um critério razoável para a atribuição desse predicado para algo é que esse algo precisa mostrar comprometimento com a tese que a essência das mulheres é inferior em relação a dos homens de modo que esses últimos devem “guiar” as mulheres. Por exemplo, coagindo-as a fazer atos sexuais mesmo que essas não assim o queiram. “Mulheres” e “homens” são usados aqui de modo solto; não é a minha pretensão tratar neste breve texto de disputas complexas tais como a se esses conceitos são biológicos ou sociais. 

O que é mais crucial é indicar que a abordagem predicativa tem algumas vantagens em relação ao tipo de visão neokantiana que suscita os desafios 1 a 5. Primeiramente, essa abordagem evita esses desafios ao não se valer da distinção entre condicionado e incondicionado. Além disso, a abordagem predicativa evita a confusão ou mesmo o colapso entre entidades diferentes tal como: o próprio Pedrinho; um comentário feito por ele; uma atitude tomada por ele; o que ele simboliza ou pretensamente simboliza; a assim chamada “cultura do futebol” etc. Isso ocorre porque essa abordagem defende que mesmo que <Sexista>  seja atribuível a alguma dessas entidades, isso não necessariamente significa que esse predicado é atribuível a todas as outras. Não faltam, porém, objetos relacionados ao futebol aos quais <Sexista> é atribuível. Um exemplo são certos atos que o ex-jogador Robinho adotou numa boate e que o levaram a ser condenado na Itália a nove anos de cadeia por estupro. 

Embora o texto de Lacombe não afirme explicitamente que <Sexista> é atribuível ao próprio Pedrinho, é razoável interpretar que esse texto insinua que essa atribuição deve ser feita. Afinal, esse texto é consideravelmente impreciso. Logo, não é irracional alegar que ele permite essa leitura, mesmo que Lacombe sugira o contrário num texto posterior alegando que o texto é uma espécie de elogio ao Pedrinho. Na verdade, na sua resposta a Lacombe, o próprio Pedrinho interpreta que Lacombe atribuiu <Sexista> a ele. Por conta disso, Pedrinho procura mostrar que essa atribuição é injustificada. 

Outra vantagem da abordagem predicativa é que ela só atribui <Sexista> a algo que satisfaz o mencionado critério razoável. Isso é proceder com cautela quando decidindo acerca de aferição de <Sexista> a algo. Ao proceder com essa cautela, a abordagem predicativa também tem outra característica que pode ser vista (pelo menos por alguns) como uma vantagem. A característica é a de ser consistente com uma postura que eu tenho tecnicamente chamado de esquerdista; a postura de procurar mostrar tolerância, mente aberta ou mesmo empatia em relação aos outros cujas sensibilidades em relação a disputas são radicalmente diferentes das de si. Por exemplo, Pedrinho parece ser um outro em relação à Lacombe no que concerne à disputa sobre qual a melhor explicação para o mencionado fato. 

Oposta à postura esquerdista é uma outra que pode tecnicamente ser chamada de direitista; a postura de ser intolerante, mente fechada ou procurar apenas se autodefender dos outros. <Sexista> de fato pode ser atribuído a algumas ações daqueles que adotam a postura direitista. Um exemplo é a ação de sugerir que mulheres não devem ser comentaristas, uma vez que suas próprias essências não as permitem ocupar esse tipo de posição. Essa ação, tendo a crer, é recorrentemente adotada. Me parece crucial criticá-la. Mas, ao assim o fazer, é preciso determinar exatamente quem é o agente de tal ação. É isso ao menos o que propõe a abordagem predicativa a qual também tem a vantagem de sublinhar que ao menos que nova evidência seja trazida, não parece justificável atribuir ou insinuar que <Sexista> é atribuível ao próprio Pedrinho. 







 

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