Godard, Sampedro, Dom Pedro II e o sonho de um homem ridículo: perspectivas sobre o suicídio

Juliomar Marques Silva

Doutor em Filosofia, UFBA

31/08/2023 • Coluna ANPOF

Para Kayk, meu amigo e psicólogo.

Escrevo este texto para discutir um tema bastante polêmico e necessário, a saber, a questão do suicídio. Pretendo apresentar algumas perspectivas sobre este fenômeno muito peculiar praticado pela espécie humana. A pergunta central é por que alguém cometeria suicídio? Antes de mais nada, preciso dizer aos parentes e amigos que fiquem tranquilos. Pretendo apenas refletir um pouco sobre esse tema que é, afinal, filosoficamente interessante. Dito isso, vamos ao que interessa.

O fato é que as pessoas se matam pelas mais diversas razões. Também é importante lembrar que o suicídio é um fenômeno intrinsecamente humano, que eu saiba nenhuma outra espécie na natureza realiza este tipo de ato. Aliás, a natureza nos condiciona para o oposto disso. Somos naturalmente programados para nos manter vivos, a evolução e a seleção natural nos programaram para fazer tudo que for necessário para permanecermos vivos e procriar. Porém, às vezes, algumas pessoas decidem que não vão seguir essa regra e dão fim à própria vida. Mas, por que alguém tomaria uma decisão tão radical e até mesmo antinatural? A resposta está longe de ser óbvia. O ato de suicídio é intrigante e merece nossa atenção. De fato, há muitos estudos científicos e filosóficos sobre esse tema. Como não sou cientista, deixo essa abordagem para aqueles que fazem ciência. O que quero trazer aqui são algumas reflexões acerca do suicídio. A seguir, exponho algumas perspectivas pelas quais podemos olhar o fenômeno.

Uma justificativa simples para o suicídio pode ser: a pessoa quis se matar. Recentemente, o cineasta franco-suíço Jean Luc Godard de 91 anos recorreu ao procedimento de suicídio assistido, prática legalizada na suíça, e deu fim à própria vida. O cineasta não tinha doenças e sua única justificativa era a de que estava cansado e não queria mais permanecer neste mundo. Alguém poderia dizer que ele não estava doente fisicamente, mas com certeza tinha algum distúrbio mental. Pois, não é possível que uma pessoa em sã consciência tome este tipo de decisão. Porém, Godard estava muito bem de saúde, inclusive completamente lúcido. Para não deixar dúvidas sobre isso, ele gravou um último vídeo antes do suicídio em que aparece na câmera por pouco mais de 40 segundos fumando um charuto[1]. O título do vídeo em francês é “Oh! Revoir”, que significa “até breve” ou simplesmente “tchau” em tradução livre. No vídeo, Godard aparenta estar muito bem fumando seu charuto, e após balbuciar alguma coisa e fazer algumas caretas, ele se levanta e desliga a câmera sem dizer nada. O ponto é que sim, alguém pode decidir conscientemente não querer viver mais. Alguém pode decidir livremente que quer pôr um fim à sua existência. Não é preciso haver razões específicas para isso, basta que seja fruto da vontade. Afinal, somos seres livres e conscientes das nossas ações e esse é um curso de ação possível.

O filme “Mar adentro” de 2004 é outro exemplo dessa perspectiva. A história, baseada em fatos reais, narra a saga de um personagem que, após sofrer um acidente na juventude e ficar tetraplégico, tenta convencer a todos que tem o direito de pôr fim à própria vida. Ramon Sampedro (Javier Bardem) está plenamente consciente da sua decisão e expõe as razões de querer se suicidar, embora seja prontamente incompreendido e questionado. Nesse caso, por conta da condição de tetraplégico, ele encontra grande dificuldade para realizar o ato, pois permanece definitivamente deitado em uma cama sem conseguir se movimentar. Nessa condição, o personagem enfrenta uma batalha para ter seu desejo atendido. Primeiro uma batalha jurídica, pois é preciso provar que está lúcido e tem o direito de decidir sobre sua própria vida. E, ao mesmo tempo, uma batalha contra todos aqueles que o tentam impedir de fazer isso – familiares, amigos, padres e psicólogos. O ponto é que, da perspectiva de Sampedro, parece correto que ele de fato tem o direito e a liberdade de decidir o destino da sua própria vida. Não é isso que nos torna verdadeiramente humanos?

De outra perspectiva, o fenômeno pode ser visto de outra maneira. Existem muitas razões para alguém querer se matar, mas seria uma vida miserável razão suficiente? Dom Pedro II pode ser um exemplo de que, mesmo em meio às maiores desgraças, a vida ainda vale a pena ser vivida. Dom Pedro II foi imperador do Brasil por 49 anos até ser deposto por um golpe militar – no qual foi proclamado a nossa república. Porém, seus últimos dias foram deploráveis, ele já estava velho e enfermo quando foi expulso para sempre do Brasil em 1889. Como se não bastasse, perder o título de imperador e ser forçado a viver como cidadão comum em um país estrangeiro foi só o começo do seu martírio. A série de desgraças que recai sobre Dom Pedro II nos últimos dias da sua vida é de causar espanto. Em junho de1890, após chegar em Portugal para viver seu exílio, morre a sua esposa, a imperatriz Teresa Cristina. Seis meses depois, em janeiro de 1891, após reencontrar com aquela que foi realmente a mulher da sua vida, morre também em Paris a sua amante, a Condessa de Barral. Pouco antes desses eventos, Dom Pedro II teria visitado em Portugal seu melhor amigo, o romancista Camilo Castelo Branco. Este também estava velho, doente e empobrecido e ambos se queixaram que àquela altura a vida era só desgosto e sofrimento. Pouco depois dessa visita, vejam só, Camilo Castelo Branco se mata com um tiro na cabeça. Resumindo a história, Dom Pedro II estava velho, doente, sozinho e sendo forçado a viver longe de tudo e de todos. Nessa condição, muitos podem pensar que faltou a Dom Pedro II a coragem que tiveram Godard e seu próprio amigo Camilo Castelo Branco. Não lhe faltavam razões para abreviar sua vida, porém, Dom Pedro II decidiu viver e só morreu algum tempo depois de causas naturais.  

Outra perspectiva sobre o suicídio é a visão do personagem do conto “O sonho de um homem ridículo” de Dostoiévski (1877). Nesse caso, ao contrário de Dom Pedro II, temos um homem jovem e saudável já decidido que vai se matar. No início da narrativa, o raciocínio que o personagem apresenta para justificar essa atitude é bastante claro para ele. O quadro se apresenta como um argumento e as premissas o levam a essa inevitável conclusão. Para o personagem, a verdade é que tudo é indiferente. Tudo se revela em grande indiferença, o que é material um dia vira pó e a subjetividade nada mais é que um instante fugaz. Nas palavras do próprio narrador, “ocorrera-me a convicção de que no mundo, em qualquer canto, tudo tanto faz... Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum”. Se tudo tanto faz, então pouco importa estar vivo ou morto, essa era a sua conclusão. A partir desse raciocínio, o personagem já decidira que iria se matar. Porém, na noite em que havia se preparado para cometer o suicídio, ocorre um fato que o leva à outra direção. Ao voltar para casa passando pela rua, de repente uma criança em prantos agarra seu braço implorando e pedindo ajuda. Nesse instante, ele olha para a criança, hesita um pouco, mas se desvencilha dela e continua seu caminho. Ao chegar em casa, eis o momento, pega o revólver e senta na poltrona para dar cabo do que havia planejado. Antes, porém, é arrebatado por uma reflexão. Ele se dá conta de que, embora não tenha ajudado a criança, ele hesitou quando ela o agarrou. Exatamente no dia em que havia se preparado para pôr fim à sua vida, agora mais do que nunca, tudo deveria ser-lhe indiferente. Por que então ele hesitou e quase ajudou aquela criança? Nesse momento, o personagem cai em sono profundo e tem o tal sonho no qual a verdade de fato lhe aparece de modo inquestionável. A verdade é que nem tudo é indiferente. Portanto, viver ou morrer não dá no mesmo. Assim, o personagem compreende que, ao menos com base naquele argumento, o suicídio não é justificado.

Essas são algumas perspectivas pelas quais podemos olhar para o fenômeno do suicídio, obviamente, existem muitas outras. Agradeço a Kayk Santos, grande amigo e meu psicólogo preferido, por conversar e refletir livremente junto comigo sobre esse e muitos outros assuntos sem cobranças nem julgamentos.         

 


[1] O vídeo pode ser acessado no seguinte link no YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=F3C83CmwLwo

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