Guerreiro Ramos: um desafio a nossa comunidade filosófica?

Igor Lucas Adorno Santos

Pós-graduando do PPGF-UFBA, membro do GT Poética Pragmática.

13/09/2021 • Coluna ANPOF

Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), filósofo e teórico social crítico brasileiro, nos adverte, em “Considerações sobre o Ser Nacional”[1], sobre o fenômeno da “desatualização” que acometeria a vida intelectual brasileira, no âmbito teórico e, principalmente, no âmbito do vivido. A desatualização vivencial envolve uma insensibilidade à própria cultura, resultado da adoção mecânica de ideias importadas. Essa atitude, maquinal, seria expressão da certeza de que tais ideias estrangeiras constituem um saber definitivo, que, na posse do intelectual brasileiro, o eximiria da necessidade de pensar por si mesmo. 

A oportunidade de professar, em primeira mão, tal evangelho intelectual, produziria, segundo Guerreiro Ramos, um personagem específico do contexto colonial: o “novo-culto”, sujeito interessado em ostentar o conhecimento importado como um distintivo social, algo semelhante ao “novo-rico”. Em ambos os casos, teríamos produtos de relações de dominação, o novo-rico como expressão da relação classe dominante & classe dominada, e o novo-culto como expressão da relação metrópole & colônia. 

As hierarquias em jogo não teriam uma manifestação apenas externa; ao contrário, envolveriam a adesão do subalterno. O desejo, nunca satisfeito, de ser assimilado, de se confundir com a força dominante, de modo a reproduzir, em benefício próprio, algo da hierarquia imposta a todos, seria o motor das referidas condutas alienadas. Guerreiro Ramos enfatiza, entretanto, que não é a psicologia individual o que explica a “desatualização”, mas principalmente o contexto colonial. 

A colônia, submetida à dominação, não possui propriamente uma cultura sua, o que significa que, no campo das ideias, não possui opinião, apenas professa a opinião da metrópole. “A situação colonial não se define apenas por uma condição econômica; ela é um fenômeno social total, uma dependência total.”(ibid.) Entretanto, apenas a presumida coerção, advinda dos poderes da metrópole, não explicaria o fenômeno do “novo-cultismo”. É a fascinação dos próprios colonizados, diante da promessa de ascensão inscrita na assimilação do repertório importado, o que nos pode iluminar na interpretação de tais condutas. 

Guerreiro Ramos, buscando explicitar a natureza do influxo, sem resistência, de ideias estrangeiras em nosso espaço intelectual, entende que as colônias são “espaços vazios de historicidade”, em que pode surgir, por ex. “um neokantismo sem que se tenha vivido previamente um kantismo” (ibid.). O uso que ele faz do conceito de “histórico” em “Notas sobre o ser histórico” [2] busca não seu sentido historiográfico, mas antes designar uma modalidade do ser. O modo de ser histórico está fundado na consciência despertada de um povo sobre suas próprias determinações; é a consciência dos próprios condicionamentos que explicita o ponto de vista aí subjacente. Essa autoconsciência é o que caracteriza o histórico, e sua ausência na sociedade brasileira é o que explica a inexistência de estímulos que levem nossos intelectuais a um compromisso com seu contexto imediato. Não decorre de outra coisa a possibilidade de algo como um neokantismo que não responde à experiência anterior – recuperada, frequentada - de um kantismo. 

A darmos razão a Guerreiro Ramos, a ausência dessa historicidade, manifesta na adesão gratuita a uma teoria, na adoção de uma resposta para a qual não se formulou uma pergunta, seria uma triste marca da produção filosófica brasileira, acadêmica, legatária do colonialismo. Apesar de raras e valorosas ilhas de rebeldia, a média da produção filosófica nacional padeceria do mal do alheamento de si, de um fechamento à sua própria cultura, com os olhos constantemente voltados para fora, na esperança de cumprir o papel subalterno de um “pioneirismo” na importação de uma moda qualquer, com filósofos se acotovelando pela oportunidade de cumprir o papel de apóstolos da fé alheia, em flagrante exibição do que vimos como “novo-cultismo” (de “novo-culto”)

O conhecimento, assimilado por um povo munido de autoconsciência, se tornaria necessariamente perspectivo, lido sob o filtro das respostas às questões que esse povo coloca para si. Colhido por um ponto de vista particular, tal conhecimento se tornaria matéria prima para a concretização de um Projeto. A atividade filosófica que com frequência se pratica entre nós, entretanto, não se constituiria como apropriação crítica do repertório estrangeiro. A “elevação”, tomada de consciência constitutiva da atitude crítica que modela uma forma de pensar, está ausente, restando, segundo nosso autor, uma consciência ingênua. Esta se caracterizaria justamente pela ausência de historicidade, por uma lida com o mundo alheia aos condicionamentos que modelam a vida, sob a ingenuidade de que tais coisas estão simplesmente “dadas”.

A filosofia brasileira, ao não colocar diante de si os condicionamentos a que está submetida, não formularia suas próprias questões, tomando ingenuamente a atividade filosófica como um esforço sem distinções ou hierarquias, no qual toda contribuição “digna de nota” se fará ouvir. O filósofo, no Brasil, quando não se resume ao papel de pregador de verdades colhidas em paragens alheias, muitas vezes hostilizando as tentativas de pensamento autônomo em sua terra, reduziria suas ambições ao desejo de participação no círculo de debates estrangeiro, conformado e satisfeito pela oportunidade de dar palpites sobre questões que respondem ao desenvolvimento histórico e intelectual de outro povo. Sua glória, se houver, não será em benefício do “progresso universal” da filosofia, mas daqueles que, dentro de uma estrutura institucional a serviço de interesses práticos inerentes a um desenvolvimento histórico e social particular, organizam-se para transformar o trabalho intelectual em combustível para a consecução dos próprios projetos. 

O exercício pleno da capacidade de filosofar pressupõe liberdade, ou seja, capacidade de se autodeterminar, que indica maioridade. As condições históricas para tal exercício dizem respeito ao despertar de um povo para a consciência de suas limitações. Esse despertar, entretanto, sinaliza Guerreiro Ramos, não pode ser concebido em termos idealistas. Eis o que ele apresenta como ponto de discordância frente a Hegel, autor que o acompanha na discussão do fenômeno da “elevação”. Nosso autor sinaliza, em A Redução Sociológica, que “um estado de espírito generalizado não surge arbitrariamente; reflete sempre condições objetivas que variam de coletividade para coletividade”. E logo adiante: “no Brasil, essas condições objetivas, que estão suscitando um esforço correlato de criação intelectual, consistem principalmente no conjunto de transformações da infra-estrutura que levam o país à superação do caráter reflexo de sua economia” [3]. Seriam então elementos de ordem material que podem promover uma mudança de consciência.

O entusiasmo de Guerreiro Ramos com as mudanças estruturais promovidas pelo Governo Vargas diz respeito ao fato de tal esforço coletivo para redirecionar economicamente o país ser sintoma de sua elevação à história. O intuito mesmo de reorganização e autodeterminação significaria o abandono do caráter tributário do “ser nacional” do Brasil, que por muito tempo tem padecido de “insuficiência ontológica”, não sendo capaz de realizar suas potencialidades, dada sua dificuldade de ascender ao histórico. O fenômeno da industrialização, segundo Guerreiro Ramos, no seu tempo, abriria um novo e amplo horizonte, sendo a consciência dessas possibilidades ao mesmo tempo a consciência de suas determinações.

A tarefa intelectual demandada no período exigia da inteligência nacional um compromisso corajoso com a independência. E esta só seria possível para aqueles que, munidos da compreensão das possibilidades abertas pelas mudanças estruturais do país, pudessem enxergar não apenas o presente e o passado, mas também o futuro. Seria esse o modelo de homem pensado pelo filósofo espanhol Francisco Javier Conde, ao conceber o conceito de elevação, de um homem que concebe, de um golpe, o que é, o que foi e o que será. 

As circunstâncias atuais para o fazer filosófico poderiam hoje assemelhar-se, mutatis mutandis, ao contexto apresentado por Guerreiro Ramos, apesar de possuir, em relação a ele, o sinal invertido. Hoje não é a esperança promovida pelas mudanças trazidas pela industrialização, mas é paradoxalmente o desmantelamento do país o que pode servir para um vislumbre de seu potencial. O contraste entre o que fomos e o que nos tornamos pode servir como combustível para a eclosão de uma nova etapa da consciência crítica entre nós. Isso convoca a inteligência filosófica a uma tarefa dura, que seria a de promover essa autoconsciência de nosso atual fracasso civilizacional.

Diante disso, filósofo não seria aquele que se empenha na aquisição de insígnias intelectuais, ansioso pela respeitabilidade obtida pela filiação a certos círculos estrangeiros ou mesmo nacionais. A tarefa filosófica que se nos anuncia seria a de propor questões, de aceitar o debate duro e fraterno, buscando compreender as forças que atuam pelo nosso condicionamento próprio. É a tarefa de formular meios para solucionar problemas que sejam significativos em nosso próprio contexto, não a de tomar problemas nascidos em contextos intelectuais, práticos e materiais estrangeiros, tidos como problemas universais. A compreensão da tarefa filosófica que se nos impõe não se reduziria à capacidade de nos apresentarmos como um porta-vozes da inteligência metropolitana. O filósofo seria antes aquele que se mostra capaz de “atualização” em face do próprio meio, promovendo um questionamento que explicita os condicionamentos a que seu povo está submetido, que o impedem de realizar suas potencialidades.

 

[1] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20/01/1957, Suplemento Dominical, p. 8.

[2]  Id., 27/01/1957, p. 8

[3] A Redução Sociológica. Guerreiro Ramos, RJ: Ed. UFRJ, 1996, p. 45-6.