Homenagem a Anna Carolina Regner
02/02/2021 • Coluna ANPOF
Por Ricardo Botelho, bacharel em Filosofia (UFRGS)
Há cerca de um ano atrás, no dia 31 de janeiro de 2020, faleceu a professora Anna Carolina Regner, que lecionou por muitos anos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dentre outras universidades. Sua contribuição para a filosofia foi imensa: grande estudiosa do pensamento de Ch. Darwin, Anna Carolina se situa dentre aquelas e aqueles que conseguiram criar uma sensibilidade própria para a fecundidade da pesquisa em Ciências da Vida, assumindo os desafios desta difícil tarefa.
Neste momento em que se discute a ampliação do chamado cânone filosófico, creio que a professora Anna Carolina, a seu modo próprio, ofereceu uma substantiva contribuição neste sentido. Em suas disciplinas, ela promovia uma leitura rigorosa de alguns textos basilares de Darwin, com ênfase em A origem das espécies. Na década de 90 – ocasião em que fui seu aluno – o referido autor dispunha de escasso reconhecimento nos departamentos de Filosofia. Aliás, era frequente ouvirmos o nome de Darwin sendo associado com uma forma de positivismo, que teria pouco a ver com a investigação filosófica. Contudo, o que aprendíamos nas disciplinas da professora é que o apreço pela fundamentação empírica de um saber – traço de fato presente no darwinismo – não deve ser confundido com a doutrina positivista. Pois se esta última costuma se caracterizar como um apego ao dado imediato como garantia do conhecimento, já a visada darwinista consegue precisamente demonstrar que aquilo que se apresenta a um primeiro contato sensorial oculta sua origem. É preciso investigar a gênese daquele ente, ou daquela formação, geralmente soterrada no decurso de sucessivas transformações temporais.
Assim é que Anna Carolina demonstrava com entusiasmo que o exercício da Filosofia pode acontecer de forma vigorosa mesmo em autores que não são tipicamente associados a esta atividade do pensamento. Num primeiro momento, ao ouvir a expressão Filosofia da Biologia, ela me pareceu algo extremamente idiossincrático, distante dos interesses de um estudante de graduação. Lembro-me da minha grata surpresa ao descobrir que a célebre referência de I. Kant, na Crítica da faculdade do juízo, ao absurdo que seria esperar o surgimento de um novo Newton, que explicasse a geração nem que seja “de uma folha de erva” por certas leis da natureza, bem poderia ser contrastada com a argumentação desenvolvida anos depois pelo próprio Darwin.
Embora esta fosse sua área principal de pesquisa, a professora Regner não se interessava apenas pelo darwinismo. Também o pensamento de Aristóteles era tema de seu interesse, levando-a a promover um encontro muito frutífero entre o pensamento filosófico clássico e as preocupações contemporâneas. Já a partir da primeira década do século XXI, Anna Carolina trabalhou com seriedade temas relacionados ao exercício da racionalidade e da controvérsia, ocasião em que trouxe a contribuição de Marcelo Dascal para examinar certas características da estrutura argumentativa darwiniana. De um modo geral, uma consulta ao Currículo Lattes da professora mostra a amplitude e a solidez filosófica de seus interesses.
Por fim, cabe aqui também mencionar também a capacidade da mestra em organizar Encontros acadêmicos, de âmbito nacional e mesmo internacional. Tempos depois de minha saída da universidade, soube que Anna Carolina organizou o I Encontro de Filosofia e História das Ciências do Cone Sul, em 1998, na UFRGS, com todo o imenso trabalho organizativo que um evento deste porte envolve.
Infelizmente, não pude prosseguir meus estudos em filosofia. Pressões da vida me fizeram mudar de local de moradia, e dedicar-me a atividades distantes da graduação. Mas sempre me lembro com muita estima de alguns mestres e mestras que modificaram minha visão de mundo. Anna Carolina Regner foi uma delas. Que tenha longa vida sua obra.