Impactos negativos sutis do apoio da indústria à ciência

Pedro Bravo

Professor Adjunto de Epistemologia e Filosofia da Ciência na Universidade Federal do ABC (UFABC); membro do GT de Epistemologia Analítica da Anpof

12/11/2024 • Coluna ANPOF

GT Epistemologia Analítica

De acordo com uma visão comum, o impacto negativo do apoio da indústria à ciência se exemplifica nos célebres e amplamente documentados casos de fraude e má conduta na pesquisa. Se nos restringimos a essa visão, porém, não conseguimos entender qual problema há em, por exemplo, determinado setor da indústria financiar pesquisas de qualidade sobre outras explicações causais que não seu produto para determinada doença. Com base na literatura contemporânea de filosofia da ciência, procurarei mostrar o que há de errado em casos como esse, em que não necessariamente há corrupção de cientistas ou algo do gênero. Mais precisamente, irei comentar duas categorias de fenômenos que exemplificam o que estou chamando de impactos negativos sutis do apoio da indústria à ciência: a seleção e a distração industriais. Para um panorama tanto das consequências positivas quanto negativas do apoio da indústria à ciência, veja o artigo de Bennett Holman e Kevin Elliott (2018).

A seleção industrial é um fenômeno relacionado à habilidade da indústria em distribuir seus recursos de maneira seletiva. Dado que na comunidade científica há, em geral, uma diversidade de visões sobre como investigar determinado problema (por exemplo, qual desfecho clínico será utilizado para demonstrar a eficácia de um medicamento), a indústria pode financiar aqueles pesquisadores cujas concepções prévias tenham mais probabilidade de levar resultados favoráveis a ela, e não financiar os casos contrário. Bennett Holman e Justin Bruner (2017), cunhadores do termo, destacam como nesse fenômeno os cientistas selecionados não alteram suas concepções após o financiamento que receberam da indústria: ao contrário, foi por possuírem concepções prévias já favoráveis a ela que eles foram selecionados. A partir de um estudo de caso, os autores mostram ainda como a seleção industrial pode levar os cientistas financiados a posições de destaque na comunidade e a uma produção prolífica, o que pode impactar a visão adotada pelos cientistas de determinada área independentemente da fonte de financiamento de suas pesquisas. Ainda pior, dadas as condições favoráveis para que produzissem bastante e critérios meritocráticos em seleções de financiamento, quando tais cientistas forem se candidatar a editais públicos é provável que eles fiquem bem classificados e continuem pesquisando de maneira favorável à indústria - o que indica que nem sempre mais financiamento público é a solução para mitigar problemas do gênero.

A distração industrial, por sua vez, envolve o financiamento e divulgação de pesquisas (com frequência de qualidade e até independentes) com o objetivo de distração. O exemplo mais recente talvez seja o caso das pesquisas financiadas pela Coca-cola sobre os benefícios do exercício para a saúde. O exemplo clássico, como de costume na literatura sobre esses temas, vêm da indústria do tabaco: as pesquisas sobre fatores alternativos que pudessem explicar o câncer de pulmão em fumantes, como predisposições genéticas (Brandt, 2012). Mas, afinal, qual é precisamente o problema em tais casos? Em um artigo ainda não publicado, David Freeborn e Caillin O’Connor (2024) propõem que a distração industrial envolve mudar o entendimento do público de algum sistema causal. Assim, o objetivo da Coca-cola era distrair o público do papel do consumo de calorias para a obesidade (Nestle, 2019); o objetivo da indústria do tabaco era distrair o público do papel do consumo de cigarros para o câncer de pulmão. A partir da modelagem de tais situações, os autores indicam que, a partir do momento em que recebemos a informação de que uma causa de distração (e.g., sedentarismo/fator genético) em vez de determinado produto da indústria (e.g., refrigerantes ultra calóricos/cigarro) pode contribuir para determinado fenômeno (e.g., obesidade/câncer), nós diminuímos a probabilidade de que aquele fenômeno seja explicado pela produto da indústria.

Uma das táticas envolvidas em ambos os casos é recorrer a instituições apenas aparentemente independentes para que tais resultados sejam recebidos com credibilidade na comunidade científica e na sociedade. Um exemplo clássico é a indústria do tabaco e a "Tobacco Industry Research Committee" e, atualmente, a “International Life Sciences Institute” (Steele et al., 2020) e a indústria de alimentos. Para evitar problemas como a seleção e distração industriais, reguladores, cientistas, jornalistas e o público em geral precisam estar atentos ao papel dessas instituições. Como discutido, mesmo pesquisas conduzidas por cientistas honestos podem ter efeitos problemáticos tanto para a produção do conhecimento científico quanto para as políticas públicas fundamentadas nesse conhecimento. Diante disso, torna-se essencial que a comunidade científica e os formuladores de políticas adotem uma postura vigilante e crítica em relação a esses vínculos, promovendo uma maior independência da ciência e mudando o foco do debate dos cientistas individuais para como determinadas relações institucionais podem prejudicar a ciência e a sociedade independentemente da boa vontade dos envolvidos. Individualizar problemas, já sabemos, continua uma tática que escamoteia os problemas urgentes que enfrentamos (Supran & Oreskes, 2021).


Referências

BRANDT, A. M. Inventing Conflicts of Interest: A History of Tobacco Industry Tactics. American Journal of Public Health, v. 102, n. 1, p. 63-71, 2012.

FREEBORN, D., & O'CONNOR, C. Industrial Distraction. Preprint. 2024.

HOLMAN, B., & BRUNER, J. Experimentation by Industrial Selection. Philosophy of Science, vol. 84, n. 5, p. 1008-19, 2017.

HOLMAN, B.; ELLIOTT, K. C. The promise and perils of industry-funded science. Philosophy Compass, v. 13, n. 11, p. e12544, 2018.

NESTLE, M. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. Tradução de Heloisa Menzen. São Paulo: Elefante, 2019.

STEELE, S.; RUSKIN, G.; STUCKLER, D. Pushing partnerships: corporate influence on research and policy via the International Life Sciences Institute. Public Health Nutrition, v. 23, n. 11, p. 2032-40, 2020.

SUPRAN, G.; ORESKES, N. Rhetoric and frame analysis of ExxonMobil’s climate change communications. One Earth, v. 4, n. 5, p. 696–719, 21 2021.


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