"Imperialismo": uma regimentação

Felipe G. A. Moreira

Doutor em Filosofia (University of Miami) e Pesquisador de pós-doutorado em Filosofia (Unesp)

05/04/2023 • Coluna ANPOF

O termo, “imperialismo”, é recorrentemente adotado por um certo grupo de pessoas. Eu penso naquelas — feito um Rui Costa Pimenta, presidente do PCO — que são associados à “esquerda” ou mesma à uma espécie de “extremismo”. “Imperialismo”, por outro lado, não é muito usado fora desse grupo. Quero dizer: o uso dessa expressão não é exatamente comum em jornais como o New York Times ou o Washington Post. Mais: por vezes, o uso dessa expressão é visto (e.g., por leitores desse tipo de impressa) como uma justificativa para chacota ou mesmo para atribuição de carência de logos para a pessoa que dela se vale. De fato, quando usado de modo excessivamente impreciso, “imperialismo” pode parecer uma expressão problemática. 

Para colocar num vocabulário medieval caro a um Santo Anselmo, esse termo (sobretudo, se procedido pelo artigo “o”) pode parecer se referir àquilo que não é fundamentado ou existe independentemente de Deus. Isto é: uma espécie de intenção diabólica primeira ou mesmo de Diabo cuja existência, como aquela do mal, é disputável. 

Para colocar num vocabulário kantiano, “imperialismo” também pode parecer como algo que condiciona a apreensão da coisa-em-si ou do incondicionado que existe ou pretensamente existiria para além de qualquer condição. Esse uso do termo, “imperialismo”, traz então desafios parecidos aos que eu articulei no meu último texto nessa coluna. Considere o desafio de determinar quais apreensões são condicionadas pelo “imperialismo”; o desafio de explicitar quais são as condições para ser condicionado dessa maneira e o desafio de abordar a disputa ontológica acerca da existência de algo que não seria condicionado pelo “imperialismo”. 

Por fim, para colocar num vocabulário fisicalista caro a um David Chalmers, “imperialismo” pode parecer carregar um comprometimento ontológico com um entidade que não parece reduzível àquelas postuladas pela física contemporânea. Para colocar nos termos de Willard van Orman Quine, o uso dessa expressão pode então ofender o senso estético daqueles que tem um gosto por “paisagens desérticas”, onde apenas entidades corroboradas pela física contemporânea existem.

Em detrimento desses fatores, eu sou simpático ao uso da expressão “imperialismo”. É por conta disso que eu gostaria de defender que, se regimentada, essa expressão não é tão problemática quanto ela pode parecer num primeiro momento. 

O tipo de regimentação que eu tenho em mente é uma que começa por entender   “imperialismo” como um nome de um conjunto cujos membros são práticas que possuem três propriedades. A propriedade 1 é a de ser uma prática que tem uma importância social significativa. Isso porque ela afeta a vida de milhares, milhões ou mesmo bilhões de pessoas. A propriedade 2 é a de ser uma prática cujos praticantes pressionam por meio de alguma espécie de violência e têm um poder (e.g., econômico ou militar) maior ou mesmo incomensuravelmente maior do que o daqueles que resistem à adoção da prática. A propriedade 3 é que embora a justificativa da prática dependa de fatores normativos extremamente disputáveis e contingentes, seus praticantes não têm consciência ou fingem não ter consciência disso. Esses praticantes então implicitamente impõe a muitas ou mesmo a praticamente todas as pessoas um parâmetro de comportamento pretensamente necessário; um parâmetro que, caso violado, leva a consequências duras. Feito: a de ser tratado como carente de logos.

O tipo de regimentação que eu tenho em mente é, além disso, uma que distingue dentro do conjunto nomeado “imperialismo”, dois subconjuntos cujas práticas possuem as três mencionadas características: o subconjunto que pode ser nomeado “imperialismo tradicional” e o subconjunto que pode ser nomeado “imperialismo de vanguarda”. 

As práticas que pertencem ao primeiro subconjunto são aquelas que começaram a se dar ao menos desde o século 16; elas eram extremamente recorrentes durante o período da colonização promovida por países europeus como Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Por fim, essas práticas têm gradualmente se tornado menos recorrentes, ao menos depois do fim da segunda guerra mundial. 

As práticas que pertencem ao segundo subconjunto, “imperialismo de vanguarda”, são aquelas que têm se dado, sobretudo, depois do fim da segunda guerra mundial. Penso nas práticas promovidas pelos EUA com o apoio de seus aliados, e.g., os membros da Otan. Essas práticas se tornaram gradualmente recorrentes ao longo do século XX até o nosso. 

Alguns exemplos de práticas que pertencem ao subconjunto “imperialismo tradicional” são as seguintes:

1. Extermínio das pessoas que, antes da chegada dos europeus, viviam na extensão de terra que hoje é usualmente chamada de “América”.

2. Rapto, escravidão e imposição de pobreza às pessoas que, antes da chegada dos europeus, viviam na extensão de terra que hoje é usualmente chamada de “África”.

3. Propagação da tese que a essência das pessoas mencionadas em 1 e 2 é “inferior” de modo que toda sorte de violência para com elas é justificável e, na verdade, não é nem exatamente uma violência, mas uma espécie de “educação”.

4. Propagação da tese que a essência das mulheres é “inferior” à dos homens, de modo que homens devem indicar como mulheres devem se comportar, e.g., coagindo-as a apenas exercer papéis domésticos como o de cuidar dos filhos.

5. Propagação da tese que a essência dos assim chamados “homossexuais” é “inferior” à dos assim chamados “heterossexuais”, de modo que esses últimos devem indicar como homossexuais devem se comportar, e.g., impondo a homossexuais alguma espécie de tratamento religioso, médico e/ou psiquiátrico.  

6. Alusão à toda sorte de crença modal feito a que é impossível um mundo onde as práticas 1 a 5 não sejam adotadas ou um mundo onde os trabalhadores teriam os meios de produção e não seriam alienados do produto de seus trabalhos.

7. Recompensação (e.g., financeira ou de outra sorte) aos que se comportam como figuras normativas tradicionais ao propagarem as mencionadas teses e crenças.

8. Sugestão que a forma de vida daqueles que se beneficiam das práticas 1 a 7 é uma espécie de parâmetro que todas as outras pessoas devem seguir. Por exemplo, essa sugestão pode ser feita ao se chamar de “filosofia” apenas aos textos que tais homens produzem; textos esses, onde é recorrentemente expressa a violência “sutil” propriamente dogmática de se insinuar que os outros desses homens carecem de logos.

Alguns exemplos de práticas que pertencem ao subconjunto “imperialismo de vanguarda” são as seguintes:

1'. Intervenções armadas por parte dos EUA em diversos países como a Coréia, o Vietnam, o Irã, o Líbano, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia etc. 

2'. Intervenções mais “sutis” por parte dos EUA em toda sorte de países como Argentina, o Chile ou o próprio Brasil, e.g., por meio de ações da CIA, financiamento de golpes de estados, promoção de dissenso interno etc.

3'. Intervenções ainda mais “sutis” por parte dos EUA em praticamente todos os países do mundo por meio da propagação massiva de seus artefatos culturais como filmes de Hollywood, séries de TV de plataformas de streaming, especiais de comédia, músicas, moda, jogos de videogame etc. Esses artefatos constantemente pressupõe uma religião do capitalismo segundo a qual todos devem procurar atingir sucesso financeiro por seus próprios meios; que quem não assim o procura ou não atinge esse sucesso é individualmente responsável por esse “fracasso”. 

4'. Propagação da tese que as intervenções mencionadas em 1´, 2´ e 3´ são justificadas, e.g., porque todas as pessoas desejam ser “livres” no sentido de serem regidas pelo governo pretensamente “democrático” dos EUA.

5'. Criação de um povo autocentrado que parece se interessar apenas pelos artefatos culturais mencionados em 3´, ignora todos os outros e tem baixa ou mesmo nenhuma noção das intervenções mencionadas em 1´, 2´ e 3´.

6'. Demonização daqueles que se opõem às práticas 1´ a 5´, e.g., sob a base que eles seriam “não democráticos”, “terroristas”, “racistas”, “sexistas”, “homofóbicos” etc.

7'. Recompensação (e.g., financeira ou de outra sorte) aos que se comportam como figuras normativas de vanguarda ao fazerem essa demonização, e.g., por meio de “cancelamentos”. 

8'. Sugestão que a forma de vida daqueles que se beneficiam das práticas 1´ a 7´ é uma espécie de parâmetro que todos devem seguir. Um modo de se fazer essa sugestão é praticando a violência “sutil” pseudo não dogmática de se fazer filosofia como se ninguém que se opusesse às práticas 1´ a 7´ existisse ou merecesse atenção. 

Concedida a mencionada regimentação, não vejo porque o uso do termo “imperialismo” seria problemático. Também não vejo como justificada a associação daqueles que se valem dessa expressão à uma espécie de “extremismo”.  Afinal, parece empiricamente evidente que práticas como 1 a 8 e como 1´ a 8´ existem e que as primeiras têm sido gradualmente substituídas pelas segundas. Na verdade, a própria prática de ignorar esse fato e buscar deflacionar discursos que se valem do termo, “imperialismo”, pode ser vista como uma prática que está presente nos dois mencionados subconjuntos. Por conseguinte, a minha esperança é a seguinte: a que esse texto contribua para expandir o grupo das pessoas que se valem, sim, e sem constrangimento do termo “imperialismo” da maneira regimentada descrita aqui.

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