Jacques Derrida - ainda por vir

Nathan Braga Fontoura

Mestre em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

09/10/2024 • Coluna ANPOF

Em 09 de outubro de 2004, nos deixava, definitivamente, uma das personalidades mais emblemáticas e ilustres do pensamento mundial desde a segunda metade do século XX: Jacques Derrida. O filósofo francês, de origem argelina, logo, franco-argelino, foi o último grande nome de sua geração a nos deixar. Um espírito mais que aguçado, Derrida possuía uma gentileza ímpar e uma perspicácia inigualável em relação aos seus pares, o que fez dele uma figura incontornável para além do campo limítrofe da filosofia. Isso é verificado pelo fato de que diversas obras suas foram traduzidas para mais de quarenta línguas, um trabalho que, diga-se de passagem, continua sendo realizado por seus estudiosos e tradutores.

Tendo iniciado sua trajetória acadêmica nos anos 1950, ganhou proeminência a partir de 1967 com a publicação da tríade considerada “fundamental” para o seu pensamento, a saber: A escritura e a diferença, A voz e o fenômeno e Gramatologia, escritos imprescindíveis que, hoje em dia, já são vistos enquanto “clássicos” do idioma filosófico inventado por Derrida, intitulado pensamento da desconstrução. Com uma carreira longa, repleta de debates midiáticos/públicos, Derrida foi um intelectual engajado em uma série de problemas que concernem ao nosso tempo. Em um certo sentido, ele antecipou muitas questões que, atualmente, são temas de discussão ao redor do mundo. É notável que inúmeros trabalhos tenham sido produzidos a partir dele nas duas últimas décadas; e, mais do que nunca, sentimos os efeitos da desconstrução na atualidade, seja no âmbito estritamente filosófico, ou em outras áreas do saber humano. Nesse sentido, podemos nos questionar: passados esses vinte anos desde a sua partida e, portanto, o seu impacto imediato no tecido social, ainda haveria algo que Derrida pudesse nos dizer?

Mesmo tendo sido assimilado por um certo ambiente acadêmico francês, Derrida foi um estrangeiro em sua “própria” terra: de origem árabe e judaica, nascido numa Argélia colonizada, sentia uma paixão inexplicável pela língua oficial da metrópole; embora não fosse propriamente sua, era a única que ele “possuía”. Essa experiência, relatada pelo filósofo em O monolinguismo do outro, marca uma diferença essencial relativamente aos demais pensadores eminentes de seu tempo: o fato de que Derrida jamais poderia ser considerado um “filósofo francês legítimo”, tal como Deleuze e Foucault, ainda que tenha se dedicado intensamente ao pensamento e alcançado prestígio em instituições fora da Europa. Derrida sabia que a sua contínua presença na academia francesa, com seu sotaque e seus trejeitos, simbolizava a introdução do absolutamente outro em um espaço ao qual, em princípio, ele não pertencia.

Arriscaria dizer, aqui, que essa é uma das justificativas pelas quais Derrida se tornou um pensador fronteiriço, sempre trabalhando por meio de atalhos, bordas, brechas, falhas, margens, rastros etc. dos discursos de toda ordem, em especial o filosófico, trazendo à tona possibilidades de desvios, portanto, de desconstruções possíveis, inclusive nos textos que se pressupunham os mais homogêneos. Em sua tentativa de fazer a diferença, Derrida operava muitas vezes, de modo proposital, pela marginália filosófica da tradição ocidental, buscando destacar, enfatizar, algum problema ou texto que tenha passado despercebido por leitores desatentos, ou que possa ter sido considerado como secundário, não tão importante ou relevante para o pensamento logocêntrico-tradicional, com o propósito de mostrar que no entorno da centralidade havia algo de interessante que poderia vir a ser tratado.

Além disso, o filósofo franco-argelino foi incansável em suas críticas ao que ele nomeou de logocentrismo e todas as suas diferentes formas de expressão – fonocentrismo, falocentrismo etc. –, bem como expressões próprias da filosofia, centralizadas em um tipo específico de logos, como empirismo, idealismo, racionalismo, realismo, entre muitas outras. Ao criticar todos esses “ismos”, ele nos recorda que o seu esforço se concentrou na resistência à centralização do logos, isto é, à modalidade problemática que este assume durante o seu exercício, alérgica à alteridade, à diferença, à invenção, ao contrário do que fizeram parecer alguns dos seus críticos e delatores, para os quais Derrida não passava de um irracionalista nonsense. A crítica ao centrismo do logos está associada à chamada metafísica da presença, denunciada por ele como sendo a configuração definitiva, máxima, peremptória que as metafísicas assumem, da qual não se poderia desprender radicalmente, considerando que sua lógica operante procura, a cada instante, novas maneiras de se reconstituir. Apesar de Derrida reconhecer a impossibilidade de vivermos, todo o tempo, nas trilhas abertas pelos desvios do pensamento tradicional, isso não significa que nós devemos parar de tentar, a fim de evitar recair nas armadilhas logocêntricas.

Então, esboçando uma resposta à minha própria questão, diria que, certamente, ainda há muito o que dizer a partir/junto a Derrida; afinal, sua extensa obra possui inúmeras contribuições para o pensamento em geral, principalmente no que se refere às questões de caráter ético-político e estético-poético. Em nosso caso particular, o de um país que segue num processo interminável de desenvolvimento e, no presente, de descolonização do pensamento, a contribuição derridiana revela-se valiosa para pensarmos em temas como: alteridade, democracia por vir, espectralidade, herança, justiça, responsabilidade, segredo, e incontáveis outros.

Para além do Monolinguismo, O outro cabo também traz um relato da experiência do ser colonizado, algo que compartilhamos com Derrida, uma condição herdada que não escolhemos receber e que, por sua vez, impõe que se responda por ela, no sentido de apontar para uma saída ou proposta que não seja mais ou, ao menos, unicamente, direcionada pela soberania deste outro que exercera a sua predominância velada e/ou violentamente. Assim como há o questionamento da metafísica da presença – que, em última instância, é a forma final onto-lógica assumida pela colonização –, é preciso libertar-se dessa dependência cultural, política e social que nos mantêm reféns das centrais de comando e controle do pensamento.

Aos poucos, tenho visto crescer a discreta recepção da desconstrução na área de filosofia produzida no Brasil. Dito isso, aproveito o espaço concedido para ressaltar a brilhante iniciativa de alguns professores-pesquisadores da cidade do Rio de Janeiro que, ao longo das duas últimas décadas, ensinam e pesquisam sobre a desconstrução derridiana em suas respectivas graduações e pós-graduações, formando gerações de estudantes interessados em dar continuidade ao legado instituído pelo próprio Jacques Derrida. No que concerne a este filósofo incomparável, não tenho dúvidas de que existem infinitas tarefas por realizar em termos de ensino, pesquisa, produção e tradução. É nesse sentido que reafirmo: Derrida não está morto! Seu espírito, ou melhor dizendo, seus espectros continuam a nos rondar...


REFERÊNCIAS

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4. ed. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2011.

______. A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo na fenomenologia de Husserl. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.

______. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994b.

______. Gramatologia. 2. ed. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2017.

______. Margens da Filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. São Paulo: Papirus, 1991.

______. O Monolinguismo do Outro: ou a prótese de origem. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras – Editores, S.A., 2001a.

______. O outro cabo. Tradução de Fernanda Bernardo. Coimbra: A Mar Arte, 1995.

______. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001b.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã... Diálogo. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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Nathan Braga Fontoura

Mestre em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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