Lélia Gonzalez: por uma filosofia em pretuguês

Diego dos Santos Reis

Prof. UFPB

16/03/2021 • Coluna ANPOF

Que o pensamento de Lélia Gonzalez seja fundamental para o campo das humanidades brasileiras, não resta dúvida. Tampouco que sua trajetória de lutas siga inspirando as novas gerações, em nome da efetivação da agenda antirracista e antissexista, em um país que não cessa de superar recordes em relação às violências e violações sistemáticas aos direitos de populações vulnerabilizadas. Na área de filosofia, contudo, as reverberações críticas da voz de Lélia ainda são abafadas por uma cultura acadêmica que persiste em reiterar historiografias, representações e imaginários exclusivamente euronorcentrados, brancos e masculinos.

Gonzalez nos conta que, em seu itinerário formativo, até a conclusão do curso de filosofia na Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 1962, aos 27 anos, foi alvo de intenso processo de embranquecimento:

Na faculdade, eu já era uma pessoa de cuca, já perfeitamente embranquecida, dentro do sistema. Eu fiz Filosofia e História. E a partir daí começaram as contradições. Você enquanto mulher e enquanto negra sofre evidentemente um processo de discriminação muito maior (GONZALEZ apud RATTS; RIOS, 2010, p. 41).

O embranquecimento cultural, ou a “outra estratégia do genocídio”, como nomearia Abdias Nascimento (2016), caracteriza-se pelo processo de apagamento da memória e das referências negro-africanas e funciona como mecanismo intrínseco ao sistema educacional brasileiro. Por aqui, o “esquecimento do ser” negro caminha em consonância à sobrevalorização do modelo branco-europeu de beleza e cultura e ao desprezo manifesto à cultura negra, com “a reproduc?a?o de estereo?tipos raciais (e sexistas)”, que culmina no “desejo de ser o Outro: branco, europeu, colonizador, ocidental” (RATTS; RIOS, 2010, p. 44). Não à toa, como salienta Abdias,

Tampouco à universalidade da universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo ocidental europeu ou norte-americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para longe do chão universitário como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do país é o mesmo que provocar todas as iras do inferno [...] (NASCIMENTO, 2016, p. 114).

Professora de filosofia com passagem por diversas instituições de ensino básico e superior cariocas, como o Colégio de Aplicação da UEG (UERJ), o Colégio Santo Inácio e a Universidade Gama Filho, Lélia foi, ao longo de sua toda sua trajetória acadêmica e de militância, uma educadora. Educadora de nuestra Améfrica Ladina, comprometida com as lutas antirracistas/antissexistas/anticlassistas, profundamente ligadas à criação de “formas poli?tico-culturais de resiste?ncia que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberac?a?o” (GONZALEZ, 1988, p. 138).

A face menos conhecida de Lélia, como tradutora de obras de filosofia e psicanálise, merece destaque também. Entre 1966 e 1970, segundo Ratts e Rios (2010, p. 50), Lélia verteu do francês para o português o Curso Moderno de Filosofia (1966), o Compe?ndio Moderno de Filosofia - A Ac?a?o, volume 1 (1966), o Compe?ndio Moderno de Filosofia - O Conhecimento, volume 2 (1968) e a Histo?ria dos Filo?sofos Ilustrada Pelos Textos (1970), de Denis Huisman e Andre? Vergez, para a Editora Freitas Bastos. Traduziu ainda, em 1976, Freud e Psicana?lise, de Octave Mannoni, para a Editora Rio, na qual exerceu a func?a?o de Editora-assistente entre 1974 e 1975, como relata Elizabeth do Espírito Santo Viana (2006).

Em plena ditadura empresarial-militar, Lélia reunia em sua casa amigas/os e estudantes para debates sobre filosofia, nos quais, segundo depoimento de Januário Garcia a Raquel Barreto (2005), eram discutidos textos de Simone de Beauvoir, Louis Althusser, Jean-Paul Sartre, entre outras/os. No decurso dessas reuniões, que funcionavam, a um só tempo, como espaços formativos e de militância, as questões raciais começaram a despontar. E, é bem verdade, sob o risco da acusação política de subversão, haja vista que, em um país onde vigorava a suposta “democracia racial”, qualquer debate em torno dessa temática poderia “perturbar a paz social”, com a consequente reclusão das pessoas envolvidas.  

Segundo Barreto (2005), em 1972, o nome da filósofa constava nos fichários do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). À ocasião, Lélia lecionava a disciplina de introdução à história da filosofia na extinta Universidade Gama Filho (UGF), no Rio de Janeiro. A ficha indica a necessidade de verificação de um suposto “recrutamento de adeptos a? doutrina marxista” na UGF. Provavelmente, devido às reuniões realizadas pela professora para os debates filosóficos. Afinal, o que mais poderia ser tratado nesses encontros? Qual seria a razão para uma professora universitária reunir em sua casa tantas/os estudantes e amigas/os? Para discutir filosofia?

Em 1978, uma nova menção nos arquivos do DOPS. Agora em virtude do engajamento de Lélia no Movimento Negro Unificado (MNU) e de sua presença nos atos públicos, com vasto material de cursos, palestras e reuniões documentados nos arquivos – o que, nas trilhas de Barreto, indica que os órgãos da vigilância acompanhavam de perto a intelectual negra. Afinal, por que razão discutir o lugar do negro ou a subjugação da mulher negra na sociedade brasileira? No Brasil da “democracia racial”, da simpatia, do futebol e do carnaval não haveria lugar para esse papo. Nem na filosofia.  

Se a filosofia é a disciplina mais branca das humanidades, conforme declara Charles Mills (1997), o contrato racial que justifica essa supremacia, como bem evidenciou a filósofa Sueli Carneiro (2005), respalda-se em uma série de dualidades que não cessam de converter a diferença em desigualdade inferiorizada. A percepção do repertório exclusivamente eurobranco do pensamento social brasileiro e das humanidades fez com que Lélia sacasse também os mecanismos de (re)produção do racismo e do sexismo epistêmicos e acadêmicos. Enquanto categorias socialmente construídas, raça e gênero foram mobilizadas, historicamente, para justificar violências, hierarquizar produções filosóficas não-ocidentais e naturalizar a supremacia europocêntrica, como afirmaria Gonzalez (in HOLLANDA; PEREIRA, 1980, p. 207) em entrevista concedida para o livro Patrulhas Ideológicas.

Politica e epistemicamente comprometida com o combate às estruturas do projeto colonial-escravagista e patriarcal brasileiro, ancorado na lógica de desumanização e de aniquilação de corpos designados como racialmente/sexualmente inferiores, Lélia não cessou de se opor aos legados nefastos da colonização e das políticas racistas/cisheterossexistas que pavimentam historicamente o Estado Brasileiro.

Em 2021, Lélia, que faleceu em 1994 aos 59 anos, completaria 86 anos. Apesar da morte prematura, seu pensamento e sua obra seguem nos convocando a repensar as relações de gênero, de raça e de classe em um país no qual o genocídio e o feminicídio negros recrudescem e atingem patamares aterradores. Alta letalidade aliada à manutenção dos estereótipos e do padrão mórbido das relações raciais/sexuais, a partir de uma régua de humanidade que naturaliza os padrões da violência e do epistemicídio a grupos considerados sub-humanos.

O chamado a uma filosofia em pretuguês, num campo de disputas acirradas e de deslegitimações violentas, expande o filosofar a outras línguas, corpos e experiências. E ao desbunde filosófico, para além das amarras impostas pela geografia da razão ocidental. Amarras coloniais.  A filosofia configura-se, assim, como território poroso, vivo, situado, epistemica e politicamente, e indissociável de seus múltiplos lugares de produção e de enunciação, pois “não podemos ser coniventes com posturas ideológicas de exclusão, que só privilegiam um aspecto da realidade por nós vivida” (GONZALEZ, 2020, p. 270).

Diante dos retrocessos de um país que marcha a ré e das assimetrias alarmantes do números de mulheres[1] (ARAÚJO, 2016) e pessoas negras na área de filosofia, bem como da subrrepresentação de temas e trabalhos relacionados à população negra no campo[2] (MOREIRA, 2019), não se trata apenas de radiografar a desproporção e a disparidade que seguem pressionando esses segmentos ao não-ingresso e à evasão ao longo do itinerário formativo e profissional. Mas, sobretudo, traçar medidas efetivas que viabilizem a superação desse quadro acadêmico hegemônico, respaldado por pactos raciais e sexuais discriminatórios, que seguem operando em reforc?o de mu?ltiplas formas de viole?ncia, siste?micas, simbo?licas e institucionais.

É preciso implodir as fronteiras raciais e sexuais de filosofias (e suas histórias) que invisibilizam sujeitos, em prol da manutenção da hegemonia de um pensamento único, que mobiliza os valores da (pretensa) objetividade, da neutralidade e do rigor para excluir outras lógicas e cosmopercepções. Monorracionalidade que pretende manter intactas as cercas dos latifúndios do saber, com suas monoculturas predatórias. É preciso ocupar e reivindicar outro assentamento para esse território; outros corpos, vozes e saberes para esse campo (minado) do qual também Lélia foi expropriada ao denunciar as valas abertas dessa Améfrica Ladina. 

 

Referências

BARRETO, Rachel de Andrade. Enegrecendo o feminismo ou feminizando a raça: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construc?a?o do Outro como na?o-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em Educac?a?o) – Faculdade de Educação, Universidade de Sa?o Paulo. Sa?o Paulo, 2005.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Flávia Rios e Márcia Lima. 1ª. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

GONZALEZ, Le?lia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Revista Isis Internacional. Santiago, v. 9, p. 133-141, 1988.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto M. Pereira (Org.). Patrulhas ideológicas. Marca Reg. São Paulo: Brasiliense, 1980.

MILLS, Charles. The racial contract. New York: Cornell University Press, 1997.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3ª. edição. São Paulo: Perspectiva, 2016.

RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Le?lia Gonzalez. Sa?o Paulo: Selo Negro, 2010.

VIANA, Elizabeth do Espírito Santo. Relac?o?es raciais, ge?nero e movimentos sociais: o pensamento de Le?lia Gonzalez 1970–1990. Dissertac?a?o (Mestrado em História Comparada) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.

 

 


[1] Cf. ARAU?JO, Carolina. Mulheres na Po?s Graduac?a?o em Filosofia no Brasil – 2015. Sa?o Paulo: ANPOF, 2016. Disponi?vel em: http://anpof.org/portal/images/Documentos/ARAUJOCarolina_Artigo_2016.pdf. Acesso em: 20 jan. 2021.

[2] Cf. MOREIRA, Fernando de Sá. Estudos filosóficos sobre o negro no Brasil: um levantamento de teses e dissertações em temáticas negras nos Programas de Pós-Graduação da área de Filosofia (1987-2018). Problemata: R. Intern. Fil. v. 10. n. 2 (2019), p. 313-345.