Lugar de Negro na Pós-Graduação: Mais Nota, Mais Dinheiro, Mais Branco

Fernando de Sá Moreira

Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense

Maria Alice de Jesus da Silva

Graduanda em Filosofia pela UFF

12/06/2024 • Coluna ANPOF

Texto publicado em parceria com Le Monde Diplomatique Brasil

A filosofia brasileira vive uma condição absurda. Diferentemente de outras áreas acadêmicas, que, com todos os problemas que advêm daí, afirmaram o negro como objeto do conhecimento, embora o desconsiderem enquanto produtor de saber. Até há pouco, salvo algumas exceções, quase não havia homens e mulheres negras entre os docentes e mesmo entre os discentes de nossas universidades e programas de pós-graduação. No quadro hegemônico da filosofia acadêmica no Brasil, o negro não era nem objeto legítimo, nem sujeito. Mal nos sobrava espaço entre o público. Lugar de negro na cultura filosófica nacional foi até ontem praticamente lugar nenhum.

A despeito dessa tradição maldita, algumas coisas estão mudando; e não sem muita resistência. Então, vejamos em que pé estamos, especialmente no caso da presença de estudantes negros e negras nos mestrados e doutorados da área. O fato é que os dados consolidados de cor/raça dos estudantes apontam para um cenário tal, que algumas perspectivas animadoras parecem conviver com novas formas sutis de limitações e controle dos espaços e recursos.

Os dados apresentados a seguir são resultado do trabalho que realizamos na pesquisa de iniciação científica Raça e Gênero na Pós-Graduação na Universidade Federal Fluminense, financiada pelo CNPq. Vamos lá.

A presença negra nos corpos discentes de mestrados e doutorados em filosofia no Brasil cresceu. Considerando apenas estudantes com raça/cor declarada, a área saiu dos míseros 20,3% para 31,9% entre 2017, primeiro registro do quesito pela Capes, e 2022, dados mais recentemente consolidados.

A notícia é positiva, mas também deve ser vista com alguma cautela. De acordo com o último censo (2022), pretos e pardos somam hoje 55,5% da população brasileira. Portanto, há ainda uma defasagem enorme a superar. Atualmente, na grande área das ciências humanas, a filosofia está à frente apenas da área de psicologia (30% de discentes negros). E, ambas se encontram muito distantes de áreas como antropologia/arqueologia (45,7%), educação (42,3%) ou história (45,2%).

Porém, não basta olhar os números em geral. É preciso lançar os olhos para questões espinhosas: a quem devemos o aumento de pós-graduandos negros, e quais programas estão tomando a dianteira desse processo de mudança? Afinal, a presença negra não cresceu de maneira uniforme em todos os PPG. Muitos deles continuam quase tão segregados quanto no passado. Na verdade, por incrível que pareça, ao lado de programas que aumentaram significativamente a presença negra em seus quadros, há também vários outros que se tornaram ainda mais embranquecidos nos últimos anos.

Como área, a filosofia se tornou 57% mais negra em 5 anos, contudo, na maior parte dos programas, a presença negra variou no máximo 10% para mais ou para menos. Como então o enegrecimento relativo de mestrandos e doutorandos foi possível? Se olharmos com atenção, veremos que o que fez realmente a diferença foi a ampliação no número de programas da área, além do aumento no número de núcleos de nosso único mestrado profissional em rede (Prof-Filo). Muitos desses novos núcleos e programas foram instalados nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, as regiões com maior concentração de pessoas negras no país.

Contudo, ainda que o fator geográfico seja importante, não é o único fator relevante. A modalidade do programa pesa também. Pessoas negras têm encontrado muito mais espaço em mestrados profissionais do que em mestrados ou doutorados acadêmicos. Algumas de nossas universidades sediam tanto núcleos do Prof-Filo quanto programas acadêmicos. A tendência é inequívoca: o perfil dos discentes ligados ao mestrado profissional de uma instituição é geralmente muito mais negro do que o dos discentes do programa acadêmico da mesma instituição. Em 2022, por exemplo, o mestrado profissional da UFES registrou 64,3% de estudantes negros, o programa acadêmico apenas 17,8%. Na mesma data, a UFPR registrou 37,5% no profissional e 7% no acadêmico. A UFSCAR, 85,7% no profissional e 21% no acadêmico.  

Ou seja, o avanço relativo da representação negra na filosofia dependeu fundamentalmente da expansão regional e expansão da modalidade profissional. Assim que a área parar de expandir, o percentual de negros na área deve também estabilizar ou mesmo cair. E isso sem que tenha sido realmente transformada profundamente a realidade dos programas mais antigos, com mais prestígio, mais poder simbólico, e mais recursos. A arapuca está armada.

Apenas 21,5% dos pós-graduandos em programas de pós-graduação acadêmicos em filosofia com nota 7 são negros. Em contrapartida, somos 39% dos programas acadêmicos nota 3. Os programas profissionais (ambos nota 4) têm, por sua vez, impressionantes 59,2% de estudantes negros.

A filosofia desenhou até o momento um quadro inequívoco. Programas com mais prestígio são também aqueles que menos contribuem para mudar a situação de exclusão racial na pós-graduação. Porém, como se já não bastasse, há ainda um elemento importante a ser considerado: o dinheiro. Programas com maiores notas não desfrutam apenas de capital simbólico, mas também são aqueles que objetivamente recebem mais financiamento e bolsas. Em 2022, por exemplo, considerando apenas as verbas de custeio fornecidas pela Capes (Proap e Proex), ou seja, sem considerar outras fontes de fomento, os programas em filosofia nota 3 da área receberam em média R$6.192,57 cada. Dividindo o total de recursos destinados pelo número de discentes nesses programas, chegamos a constatação de que eles receberam dessas fontes apenas R$184,03 por discente naquele ano. Nos programas nota 7, porém, a situação é muito diferente. Eles receberam em média R$132.426,50 cada, R$690,00 por discente. A diferença é brutal.

Programas que recebem mais recurso são os que menos abrigam estudantes negros. Quer dizer, não apenas o acesso à pós-graduação é influenciado pelo fator raça, mas também, uma vez que se esteja dentro da pós-graduação, o acesso aos recursos também é. Considerando que pretos e pardos permanecem em posições subalternas em nossa sociedade, ocupar espaços com chances menores de financiamento dificulta substancialmente a formação desses pesquisadores.

Quanto mais nota, mais dinheiro e menos negros.

Em grande medida, nós estamos afastados do acesso à pós-graduação em geral e ao acessá-la, temos menos recursos e uma quantidade menor de bolsas. E, quando chega a hora de buscar um doutoramento, frequentemente arcamos com o ônus de obrigatoriamente ter que buscar uma instituição diferente daquelas que fizemos nossos mestrados, muitas vezes em outros estados ou regiões do país.

O racismo opera muitas vezes como uma tecnologia social que proíbe formal ou informalmente que pessoas negras ocupem determinados espaços. Mas esse não é seu único modo de funcionamento. Ele muito frequentemente não atuará no sentido de vetar a ocupação de um espaço, mas sim de controlar quais indivíduos ocuparão quanto espaço e sob quais condições. No entanto, há sempre o risco de o controle falhar e, desde essa brecha, que a ordem racista seja colocada em xeque. Um horizonte todo novo brota daí.

Todo o nosso respeito aos programas que assumiram até aqui a responsabilidade de finalmente tirar da filosofia o título de pós-graduação mais branca das humanidades (somos “apenas” a segunda pior área agora! Ufa…). Rendemos nosso respeito especialmente aos programas profissionais e acadêmicos notas 3 e 4, a maioria deles sem a opção do curso de doutorado, que foram até o momento os protagonistas desse pequeno avanço.

É passada a hora dos demais programas assumirem também essa responsabilidade, especialmente aqueles que são considerados “excelentes” (nota 6 e 7). Se sua excelência deveria servir de modelo e indução de boas práticas na área, é preciso dizer que, no que diz respeito à questão racial, não é o que acontece neste momento.

Um novo horizonte brota na filosofia brasileira. Que papel cada programa pretende assumir diante disso?


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.