Lux in Tenebris: tributo a Roberto Romano (1946-2021)

Edmilson Menezes

Professor da Universidade Federal de Sergipe

05/08/2021 • Coluna ANPOF

O Prof. Roberto Romano deixou-nos aos 75 anos, no dia 22 de julho próximo passado. Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, possuía Doutorado em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), com tese defendida sob a orientação de Claude Lefort e intitulada Le signe et la Doctrine - Prismes du discours théologique dans le Brésil contemporain. Aposentou-se como Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Durante sua longa carreira acadêmica foi responsável pela formação de várias gerações de filósofos, educadores e pesquisadores das Ciências Humanas, quer na condição de professor de graduação, quer na condição de orientador de grande número de dissertações de mestrado e teses de doutorado. Atribuem-se-lhe importantes obras na área da Ética e da Filosofia Política, destacando-se, entre outras: Brasil, igreja contra estado: crítica ao populismo católico (Kairós, 1979); Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo (Brasiliense, 1981; Ed. Unesp, 1997); Corpo e cristal: Marx romântico (Guanabara, 1985); Silêncio e ruído: a sátira em Denis Diderot (Ed. da Unicamp, 1996); O caldeirão de Medéia (Perspectiva, 2001); Moral e ciência: a monstruosidade no século XVIII (Ed. SENAC São Paulo, 2003); O desafio do Islã e outros desafios (Perspectiva, 2004); Ponta de lança (Lazuli; Companhia Editora Nacional, 2006) Os nomes do ódio (Perspectiva, 2009); Razão de estado e outros estados da razão (Perspectiva, 2014).  Presença marcante no cenário intelectual, foi um intérprete do Brasil político e suas ideias também se materializaram numa larga e constante colaboração na imprensa, nos eventos acadêmicos e nas diversas organizações patrocinadas pela sociedade civil.

Espinosa, na Ética (P.II, Prop.43, Escólio), nos diz que assim como a luz manifesta a si mesma e às trevas, igualmente a verdade é norma de si mesma e da falsidade. A partir dessa constatação, o filósofo nos conduz a uma questão: de onde vem que os homens tenham ideias falsas? As profundas consequências das ponderações espinosanas acompanharam a trajetória intelectual e filosófica do Prof. Roberto Romano. Incomplacente com a falsidade, esmerou-se em combatê-la onde quer que ela se apresentasse: na política, na religião, na universidade, na filosofia, etc. A marcante expressão Lux in Tenebris , pródiga em significados, serviu-lhe de título para um dos seus livros publicado pela Editora da Unicamp em 1987, mas não só. Ela, segundo penso, transformou-se numa divisa destinada a guiá-lo nas reflexões filosófica, política e acadêmica tão necessárias, em tempos de trevas intelectuais, morais ou sociais, à garantia do debate e à peleja contra o silêncio, “a mais primitiva arma de exclusão empregada pelos que se movem no reino animal do espírito”, afirmava o autor numa das orelhas daquele livro.

Conheci o Prof. Romano em 1989. Na ocasião, tinha iniciado o mestrado na Universidade Federal de São Carlos. Com a ajuda do Prof. Bento Prado Júnior (1937-2007) –  materializada em observações precisas e indicações bibliográficas seguras – pude delimitar melhor meu tema de pesquisa. No entanto, não poderia ser formalmente orientado pelo mesmo, devido à sua cota de orientandos já ter excedido naquele momento. Parto, então, para uma entrevista com Roberto Romano, na Universidade Estadual de Campinas, em busca de uma orientação colaborativa. Havia lido, fazia pouco tempo, um texto seu intitulado Kant e a Aufklärung; impressionara-me a hermenêutica das difíceis passagens do filósofo de Königsberg, sobretudo, a demonstração do esforço kantiano no sentido de eliminar, entre a consciência e a consciência, o intermediário, para tornar possível o ideal de autonomia. Nem o teólogo nem o jurista, muito menos o político, podem requerer esse papel mediador. Nem mesmo Deus. Essa abordagem instigara-me a tentar compreender a filosofia política de Kant, cuja obra eu começara a estudar devido à busca pela herança da filosofia clássica alemã no pensamento de Marx, autor para o qual se dirigiam as minhas intenções iniciais de pesquisa.  Depois de uma série de tratativas, desligamento da Universidade Federal de São Carlos e ingresso na Unicamp, passo a ser objetivamente seu orientando. Em nossa primeira reunião oficial de orientação ouvi dele: “ – Orientando assina comigo uma espécie de contrato social. No seu caso, as cláusulas são as seguintes: a) estudo sistemático da língua alemã; b) apresentação de estudos monográficos a partir das leituras indicadas; c) excelente desempenho em todas as disciplinas cursadas”. O contrato foi “assinado”  e segui com ele durante mais ou menos 10 anos de trabalhos ininterruptos. Aquelas cláusulas, consideradas inicialmente por mim um tanto exigentes, revelaram-se, com o passar do tempo, um plano eficiente e direcionado de estudos que me foi muito útil, porquanto trouxe regularidade e familiaridade com a disciplina e a organização indispensáveis ao exercício de pesquisa. Com efeito, eu não contava apenas com um supervisor, tinha diante de mim um mestre! Com ele aprendi a trilhar os difíceis caminhos da leitura e da escrita filosófica (até hoje difíceis!) e a manejar as engrenagens do mundo acadêmico. Apesar dos interregnos subsequentes ao desatar dos vínculos de orientação formal, ele ainda compôs a banca que avaliou a tese por mim defendida para ingresso na classe de Professor Titular, em 2017. Na ocasião, sua arguição foi estupenda. Nela pude ver, mais uma vez reunidas, a competência analítica do filósofo, o tirocínio do professor e a grandeza própria dos grandes intelectuais.

Espírito firme, às vezes quase intransigente, o professor correspondia a um padrão de competência, rigor e magnanimidade sem igual. Desta última, posso falar com propriedade. Refiro-me ao acolhimento intelectual a um jovem vindo de uma universidade fora dos grandes centros do Brasil e que trazia apenas uma coisa consigo: a vontade de estudar, de estudar filosofia. Para ele pareceu suficiente. Tanto no mestrado quanto no doutorado, consegui avançar numa interpretação da filosofia de Kant que, sem o clima de liberdade intelectual próprio da Unicamp e a aposta do Prof. Romano, talvez não fosse possível empreender noutro contexto acadêmico. Nossas reuniões de orientação eram, quase sempre, verdadeiras aulas de erudição filosófica, de contínuo conjugadas a espectros mais amplos da cultura. Ao final sempre saía de sua casa com uma enorme quantidade de livros emprestados e uma desafiadora lista de Hausaufgaben.

Apesar de não ter sido uma unanimidade, Romano era um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Destacava-se pela ferrenha luta contra o triunfo dos filhos da falsidade, isto é, contra a intolerância, a aversão à ciência e à verdade, o cinismo e a violência. Um intelectual que se incomodava com a placidez com a qual se acolhe, muitas vezes,  o consórcio entre o contrafeito e a campanha autoritária em benefício de certos projetos pessoais ou de família. O empenho do homem de ciência não consiste apenas no combate ao horror à teoria – sem dúvidas uma característica de nossa época –sabendo que o seu atrofiamento de modo nenhum é casual. A marca do intelectual também deve ser o comprometimento ético. A felicidade é um atrativo comum a todos os homens. Todos desejam a paz da alma, a morna boa consciência. Mas nem sempre a aconchegante tranquilidade com que encaram seu próprio rosto é indício de um comportamento moral. A beatitude de quem está satisfeito num mundo onde tudo vai mal, ou a de quem testemunha caladamente a imposição de injustiças, sobretudo as políticas, é signo certo de imoralidade, pensava Romano. A sua obra ficará marcada como  um modelo de como a ligeireza mental é combatida pela coragem do exercício da crítica. O que não é pouco, num tempo em que coragem é uma virtude cada vez mais rara nos meios acadêmicos brasileiros. Com a vida do Prof. Romano aprendemos que um intelectual não se improvisa e que a filosofia comporta certa carga de incômodo quando volta seus instrumentos de denúncia na direção dos cultuadores do obscurantismo de toda ordem. Sua pena esteve sempre orientada para arguir essa marca trevosa da nossa política, como o fez recentemente diante dos episódios que marcaram ( e marcam ) o desastroso governo de Jair Bolsonaro, classificado por Romano como “uma espécie de pedagogia do inferno”. Um comando que não se notabiliza  pelo exemplo do respeito à Constituição, às leis e aos costumes éticos corretos. Sabemos, desde Platão, que um político mal formado ou despreparado é a ruína de qualquer comunidade, principalmente se ele apenas encena possuir a virtude. Esse estilo desenvolver-se-á intensamente numa rota na qual o simulacro será usado para servir à cínica moral de um governante arrivista. O atual presidente brasileiro  associou-se aos totalitários do século XX que repetiam e repetem a farfalhada: “quem manda é o povo”. “Numa cópia ruim de Carl Schmitt, diz-se que o presidente representa o povo de modo imediato, miraculoso. Num delírio ainda pior, Bolsonaro afiança a unidade de sua existência com a Constituição. Ele é a Constituição. E como sempre na passagem para a tirania se acumula no governo muito ódio contra o saber científico. Ocorre, sob Trump e Bolsonaro, a perseguição de pesquisadores científicos, encômios a charlatães religiosos ou leigos que praticam a misologia (neologismo criado por Platão). Nunca se odiou tanto a ciência e os cientistas como no Brasil de Bolsonaro. É o engodo vivido na teatrocracia (θεατροκρατ?α) exposto nas Leis”, declarou o Prof. Romano numa entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos, em abril de 2020. Disse ainda: “Pouco importa a ele se milhares ou milhões morram pelo vírus. Urge a sua sobrevivência e confirmação na chefia do país na próxima eleição”. O quadro do Brasil dos próximos anos será, vaticinou, o de “um país mais pobre para os pobres, com maior acúmulo de riquezas para os mais ricos. Um país ainda mais repressivo e injusto, um país cuja selvageria fará historiadores recordarem o quanto o Brasil tomba hoje na pior barbárie, ignorância, superstição.”

Talvez não seja demasiado afirmar que o Prof. Roberto Romano foi vítima do país que ele tanto defendeu; vítima de sua barbárie e ignorância; vítima de sua incompetente, desonesta e irresponsável administração central, que sabe retirar dividendos para uns poucos da morte de milhares; vítima de um vírus que, antes de ser encarado como um problema sanitário, foi transformado num instrumento da necropolítica instalada no Brasil.

Apagou-se mais uma chama da já tão combalida intelligentsia brasileira. Prof. Romano, como o seu fulgor intelectual nos fará falta diante das trevas em que submergimos!