Manifesto Ecofilosófico
Dante Targa
Doutorando (UFSC)
29/10/2021 • Coluna ANPOF
Em meio ao sinistro cenário composto pelas notícias diárias sobre mudanças climáticas e o verdadeiro ecocídio atualmente em curso no Brasil o boletim especial da ANPOF sobre o Antropoceno, colapso ecológico e a filosofia (set.2021) foi um alento. Além de seu conteúdo, as excelentes reflexões e debates nos diferentes canais de comunicação deixaram algo no ar: a necessidade premente de maior difusão das ideias e pesquisas de filósofas e filósofos envolvidos com a problemática socioecológica no país. Tal necessidade se deve obviamente à gravidade e urgência da situação, mas também a uma lacuna da pesquisa acadêmica brasileira no campo específico da Filosofia Ambiental ou Ecofilosofia. Os dois pontos merecem atenção.
A bola da vez é o mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC-AR6), que nos atualiza sobre o estado crítico do aquecimento global e suas múltiplas consequências para a saúde ecossistêmica. Mas a ampla repercussão deste documento, muitas vezes diluído pela mídia em doses toleráveis, se sobrepõe a outras publicações científicas recentes que dão muito a pensar acerca do impacto de nossas ações sobre a ecosfera. Em janeiro de 2020, mais de 11.000 cientistas ao redor do mundo subscreveram o manifesto World Scientists’ Warning of a Climate Emergency. Cruzando indicadores sobre as mudanças climáticas com diferentes aspectos da atividade antrópica os autores concluem que
Sinais profundamente preocupantes das atividades humanas incluem aumentos continuados nas populações de animais humanos e ruminantes, da produção de carne per capta, do produto interno bruto mundial, da perda global de cobertura vegetal, do consumo de combustível fóssil, do número de passageiros aéreos transportados, das emissões de dióxido carbono (CO2) e das emissões per capita de CO2 desde 2000 (RIPPLE et al, 2020, p.8).
Em Underestimating the Challenges of Avoiding a Ghastly Future (BRADSHAW et al, 2021) outro grupo de renomados cientistas do Sistema Terra aponta robustas evidências de que as condições ambientais em um futuro breve serão mais perigosas do que se tem acreditado. Entre os itens mais alarmantes da revisão de dados fornecida pelo artigo estão: o declínio de 68% no tamanho da população de espécies vertebradas nos últimos 50 anos; a constatação de que hoje há menos de 15% das áreas de pantanal do que havia em 300 anos; de que mais de dois terços dos oceanos foram comprometidos em alguma medida por atividades humanas; de que 85% da energia comercial, 65% das fibras e a maioria dos plásticos depende de combustíveis fósseis. Um olhar lúcido sobre este cenário têm levado alguns pensadores a rejeitar a retórica do “ainda dá tempo”, reconhecendo-a com uma espécie de mensagem anestésica padrão disparada a cada nova evidência do agravamento da crise socioecológica. Talvez devamos, como sugere Jean-Mark Gancille em Ne plus se mentir (2019), enfrentar a inevitabilidade da catástrofe com coragem e sem desespero, para então permitir que novos valores e prioridades possam se ganhar espaço. Seja como for, a problemática socioecológica agora se impõe como uma questão filosófica incontornável que provavelmente tornar-se-á um tema transversal em nossa atividade profissional. Havendo ou não tempo hábil para evitar um futuro medonho, indagações sobre quem somos no esquema maior das coisas e o que fazer para alterar significativamente o curso de nossas ações encontram-se na agenda do dia.
Há mais de cinquenta anos a Filosofia Ambiental tem se dedicado à tarefa de examinar criticamente as diferentes relações que vamos estabelecendo com a natureza mais que humana, ou seja, aquilo a que nos referimos confusamente como “meio ambiente”, incluindo todos os diferentes ecossistemas, seus elementos bióticos, abióticos e também as dinâmicas que se estabelecem entre eles. Nos EUA, Austrália, Canadá e Noruega as primeiras conferências, seminários e cursos surgiram no início dos anos 1970 e as primeiras publicações especializadas como Environmental Ethics e The Trumpeter em meados dos anos 80. Deste então, um consistente debate tem se seguido, ampliando as reflexões inicialmente circunscritas à ética para o domínio da política, da ontologia, da metafísica e mesmo da estética. Na pesquisa em filosofia no Brasil, entretanto, muitas das principais referências deste emergente campo de estudos adentraram apenas indiretamente, através da ética aplicada, antropologia filosófica e das interlocuções críticas com as éticas animalistas e pós-modernismos. Uma grata exceção é a pesquisa ecofeminista, muito bem representada no boletim de setembro pela coluna de Tânia Khunem e Daniela Rosendo. Mas como afirma Antonio Valverde na seção de entrevistas, “ao menos no Brasil, pouco se sabe da obra de Arne Ness acerca da ecologia profunda.”
Penso que o mesmo vale para outras vertentes ecofilosóficas como a Ecologia Social de Murray Bookchin e os trabalhos de inúmeros especialistas em ética ambiental. A este respeito não concordo que Hans Jonas tenha criado a única ética projetada para incluir a natureza como sujeito ético, como afirma o professor Valverde. O debate sobre o valor intrínseco da natureza mais que humana esteve no centro das atenções da nascente filosofia ambiental e os primeiros trabalhos de Richard Sylvan, Holmes Rolston III, Baird Callicott, Paul Taylor, Kenneth Goodpaster e tantos outros incidem justamente na tentativa de criar uma ética alargada o suficiente para abranger a totalidade da natureza ou partes dela. E tomando uma rota alternativa à teorização moral, autores como Warwick Fox, Freya Mathews e Michael Zimmerman, para citar apenas alguns, levaram adiante certas intuições da ecologia profunda, cruzando-as com outras influências e chegando a novas abordagens, como a ecologia transpessoal, o pampsiquismo, a ecologia integral. O fato de, todos estes autores e suas obras ainda não terem se tornado icônicos da reflexão filosófica sobre o ecologismo no cenário acadêmico brasileiro me parece sintomático da lacuna a ser preenchida.
Na ANPOF, o espaço para este trabalho poderia se acomodar ao GT História da Filosofia da Natureza. Esta rubrica, contudo, remonta a problemas filosóficos mais amplos com uma longa tradição na história do pensamento. O que o momento demanda, a meu ver, é um espaço para abordar especificamente ao menos quatro correntes que surgem a partir da década de 1970 e que ressignificam a pergunta sobre o lugar do humano no cosmos à luz do desafio colocado pela crise socioecológica atual: as éticas ambientais, ecologia profunda, ecofeminismos e ecologia social. Por razões que não cabe aqui expor, minha pesquisa tem me conduzido a denominar estas correntes como ecofilosofias, isto é, as filosofias ambientais de caráter ecocêntrico, cujo ponto de gravidade é a crítica ao antropocentrismo e uma variedade de argumentações em torno do valor intrínseco da natureza mais que humana. A ecologia política, inúmeras pesquisas em integração transdisciplinar, as éticas animalistas e reflexões de enfoque pós-moderno sobre a crise socioecológica também se encontram em um campo interseccional que não se pode perder de vista.
Assim, este é um manifesto em busca de pares interessados em consolidar e dar maior visibilidade às pesquisas em Filosofia Ambiental no Brasil. Mais do que acompanhar de perto um campo de estudos em franco desenvolvimento ao redor do mundo, importa pensar nossas contribuições a partir do Sul global, de nossa sabedoria indígena e quilombola, e da vivência em um ambiente político pleno de todos os “ismos” da dominação. Penso que a gravidade e urgência da situação justificam até mesmo a criação de um GT de Ecofilosofia na ANPOF. Quem se habilita?
BRADSHAW, C.J.A. et al. Underestimating the Challenges of Avoiding a Ghastly Future. Frontiers in Conservation Science, v.1, Art. 615419, p.1-10, jan. 2021.
GANCILLE, J. M. Ne plus se mentir. Petit exercice de lucidité par temps d'effondrement écologique. Paris: Rue de l'échiquier, 2019.
RIPPLE, W. J. et al. World Scientists’ Warning of a Climate Emergency. BioScience, n.1, v.70, Jan. 2020.