"Mérito" Prof. DR. Érico Andrade (UFPE)

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

13/12/2019 • Coluna ANPOF

É evidente que há certa arbitrariedade em nascer numa família com fartos recursos (com capital financeiro e cultural), em nascer com algumas capacidades cognitivas ou talento acima da média, em nascer sem uma deficiência física crônica e em nascer num ambiente favorável ao sucesso que estimule o empreendedorismo e a inovação. As pessoas que nascem nessas condições são sem dúvida privilegiadas e no capitalismo elas certamente irão concentrar bens e riquezas.

No entanto, será que as pessoas que não estão sob essas condições não poderiam ter acesso aos bens produzidos socialmente? A questão que gostaria brevemente de abordar aqui consiste em entender o que leva as pessoas a defenderem a todo custo o mérito, sabendo que há uma desigualdade explícita no ponto a partir do qual as pessoas competem pelos bens.

A minha hipótese é de que o capitalismo colonizou o nosso narcisismo. Isto é, o capitalismo conferiu uma dimensão fortemente individualista ao narcisismo e fez as pessoas vestirem a fantasia de que são importantes (boas) o suficiente para merecerem o que têm.

Nessa perspectiva, parece que certas qualidades dispostas individualmente de modo diferente são tomadas, especialmente por aqueles que as têm, como critério para justificar a riqueza sob a chancela do mérito. Essas pessoas se autorizam a usarem as suas qualidades como critério para a distribuição de riquezas e bens sob a prerrogativa de que elas fizeram por merecer uma vez que desempenharam bem essas qualidades.

Defende-se sub-repticiamente que a sociedade deve ser o espelho dessas pessoas de sucesso tanto para desejar ser o seu reflexo (e igualmente ter sucesso) quanto para servir de projeção egoica do seu narcisismo (para valorizarem aquilo que elas valorizam). É nesse ponto que o capitalismo alimenta a fantasia da exclusividade, das diferenças que tornam relevante as pessoas em detrimento de outras. O narcisismo das pequenas diferenças, como certa vez disse Freud, ganha espaço num sistema que segrega as pessoas supostamente por seu desempenho. Ou seja, no capitalismo as pessoas não reconhecem seus privilégios porque incorporam uma necessidade de reconhecimento narcísica como absolutamente natural e gozam por terem seus esforços reconhecidos materialmente como os mais importantes.

Diante disso, se desenha um quadro agudo de sociopatia. As pessoas bem sucedidas ou que sobretudo vivem a fantasia do sucesso perdem sensibilidade social (dizem que as políticas que tratam desse tema são paternalistas) à medida que só reconhecem na vida social o que é o seu espelho. Assim, o esforço flagrante e explícito das pessoas nas ruas das cidades, cujas vidas são precarizadas, como diz a colega Evania Reich, não é seguido de uma reflexão sobre as condições sociais que levaram aquela pessoa àquela condição tão precarizada.

Mas gostaria de perguntar para as pessoas que estão lendo o presente texto se elas imaginam seus filhos e filhas no sinal ao meio dia vendendo bombons. Não. Claro que não. E isso demonstra como a classe de onde se parte é decisiva para obtenção de bens.

No entanto, o encantamento narcísico consigo mesmo é tão intenso que quem atenta contra o privilégio das pessoas de sucesso – as assaltando, por exemplo – não deve ter uma segunda oportunidade e a prisão é tomada, na melhor das hipóteses, com um instrumento de vingança: assaltantes deveriam passar a vida na cadeia, mas o desejo mesmo é que eles sejam eliminados. Afinal, bandido bom é bandido morto, dizem. Isso explica o nosso descaso crônico com a população carcerária. São vidas das quais se pode prescindir porque foram vidas que prescindiram das vias institucionais e meritórias do sucesso. A insensibilidade conjuga-se com a fantasia de que as pessoas de sucesso abraçaram a primeira oportunidade que tiveram. Tudo é apenas uma questão de empenho, sentenciam.

É nesse sentido que o capitalismo gera autoritarismo porque na medida em que o indivíduo infla o seu ego com o gozo do seu esforço ele se afasta drasticamente de tudo aquilo que não for o seu espelho. É quando o autoritarismo bate a porta dos ditos cidadãos de bem e os convida a assistirem de camarote à morte das pessoas: seja nas favelas, presídios ou em qualquer lugar que o mérito as proteja do alcance de um 38.

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