Metafísica e sexualidades

Rafael Haddock-Lobo

Professor do Departamento de Filosofia e
do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ

18/10/2016 • Coluna ANPOF

Em meio à crescente onda de posturas fundamentalistas por parte da população e de propostas moralistas e conservadoras por parte do governo, parece-me que, agora mais do que nunca, devemos reafirmar a necessidade e, talvez, a urgência de se tratar a questão da sexualidade como um problema de extrema importância para o debate filosófico. E isso não apenas no que concerne às questões ditas éticas e políticas, o que para parece patente, posto que a própria exigência do mundo atual já as impõe; mas, sobretudo, creio que é preciso sublinhar que a reflexão sobre a sexualidade pode também contribuir, e em muito, para se compreender a própria estrutura do pensamento ocidental – ou melhor, para uma análise mais acurada daquilo que se costuma chamar, de modo amplo, pelo nome de “metafísica” (um termo um tanto polêmico para caracterizar nosso modo de pensamento, inerente à tradição greco-judaico-cristã, mas do qual ainda não consigo abrir mão). Nesse sentido, o objetivo dessas poucas linhas consiste em reafirmar a relevância ético-política, no que diz respeito às filosofias das diferenças, de um pensamento da sexualidade, e também, sob a perspectiva de uma concepção de alteridade radical, pensar o problema da sexualidade normativa como um traço constitutivo do pensamento ocidental.

Disse logo acima que a nossa própria atualidade impõe que se pense de modo ético-político (e eu acrescentaria aqui jurídico) a questão da sexualidade. O que parece ter tido como estopim as filosofias e políticas feministas, e que obrigou o pensamento a lidar com a questão do sistema sexo/gênero, foi cada vez mais ganhando espaço em nosso tempo e, hoje, tratar a questão da multiplicidade de identidades e a própria insuficiência das noções de sexo e de gênero (em sua intrínseca relação com a ideia ultrapassada, contudo insistente, de natureza) deve ser uma das preocupações principais daqueles que se interessam por filosofia prática. Tomemos como exemplo as considerações que o filósofo espanhol Paul Preciado teceu sobre a recente e polêmica transição de Bruce Jenner (agora Caitlyn). Interessante grifar que, apesar de o fato poder ser considerado mais um apelo midiático, parece que há – como sempre houve, aliás – um apelo para que a filosofia se manifeste frente ao infinito feixe de tonalidades sexuais que se proliferam. Nesse sentido, caberia também observar que o pensamento de Preciado, que tem como estreia uma das maiores obras desse começo de século, o Manifesto contrassexual, escrito quando Paul ainda assinava Beatriz, talvez seja a fonte mais profícua para tratar do problema.

Outro possível e interessante exemplo de que o mundo nos impõe o problema das sexualidades é o reality show “A vida de Jazz”, que tem como protagonista uma menina transgênero

pré-adolescente. O programa, que gira não apenas em torno do dilema da menina (que envolve o medo do crescimento de pelos no corpo, a preocupação com o tamanho dos seios e mesmo um questionamento sobre possíveis orientações sexuais), mas também de todo o aparato médico que tais situações necessitam (como a idade em que a família deve decidir apoiar ou não desde o tratamento de hormônios inibidores de testosterona à difícil opção por parte da família de se iniciar a transição efetiva no corpo de Jazz para a aquisição das características secundárias naturalmente atribuídas ao sexo feminino), exibido em meio a tantos outros realities de família, parece atestar que tal tema, além de incontornável, ganha espaço na grande mídia. Poderia também elencar diversos outros fenômenos, como o enorme público e o destaque que as paradas do orgulho gay vem ganhando e o recorrente debate global em torno da oficialização da união de casais homoafetivos. O que interessa aqui notar é que se, sim, por um lado há um galopante crescimento de posições reacionárias ao longo de todos os continentes, por outro, uma também galopante e inevitável onda de posicionamentos transgressores, inovadores e questionantes vem ganhando espaço nesse panorama desértico.

Nesse sentido, é preciso, como disse, que a filosofia afirme incessantemente sua abertura a esses temas ético-políticos, em nome de um número enorme de indivíduos que diariamente são esmagados, em nome de uma ideia de “norma” que, em sua transcendentalidade, não serve para nada senão para crivar esse esmagamento. A questão da sexualidade, portanto, precisar constar no rol das grandes questões ético-políticas da filosofia contemporânea para que, de fato, o pensamento faça justiça às diversas maneiras que pessoas, independente de sexo ou de gênero, podem se expressar e se relacionar.

Contudo, um aspecto que venho tentando problematizar consiste em que se pense em que extensão a questão da sexualidade, para além e para aquém dos aspectos ético-jurídico-políticos, tem uma relação intrínseca com aquilo que compreendemos como a própria estrutura de nosso pensamento. Em poucas palavras, cada vez mais estou certo de que a sexualidade é um problema constitutivo da arquitetura da metafísica ocidental. Tentarei explicar: a hipótese que norteia essa aparentemente absurda sentença parte do princípio de que, se entendemos por metafísica um pensamento que se erige a partir de uma economia conceitual binária, opositiva e hierarquizante, tal economia seria expressa primária e fundamentalmente em nossos corpos na genitalização da sexualidade.

Será que esse modelo de pensamento do qual parecemos não conseguir nos afastar e que se torna a prótese de toda construção conceitual gnosiológica, ética e estética não possui um vínculo genético com o binarismo sexual? Cada vez mais acredito que é essa diferença quase-originária que marca nosso modo de pensar, pois, sobretudo, ela repousa sobre a concepção de uma “diferença natural” que cindiria nossa espécie em dois. Nesse sentido, para se levar a cabo a necessidade que

afirmaram muitos filósofos, como Nietzsche, Heidegger e Derrida, entre outros, de uma desconstrução da metafísica, ou seja, para que se possa libertar o pensamento para outras perspectivas filosóficas que se diferenciem de nossa “mitologia branca”, isso só se tornará devidamente efetivo se a questão sexual for colocada em primeiro plano, como uma espécie de “filosofia primeira”.

Por certo, não seria a metafísica, como defendia Aristóteles, essa ciência fundamental, não obstante também não seria a ontologia nos moldes heideggerianos, nem a ética segundo a concepção levinasiana. Talvez uma espécie de “redução erótica” seja a opção para que se consiga alcançar o núcleo constitutivo de nosso modo de pensar – seria preciso, assim, desconstruir o modelo erótico ocidental, em um primeiro e hercúleo esforço, para que se possa, segundo tal hipótese, libertar o pensamento de sua arquitetura dual. Mas, caso tal hipótese faça algum sentido, qual seria o procedimento para dar prosseguimento a esse processo de desconstrução, que já deve, contudo, ter começado desde o início, e possivelmente antes mesmo, do soerguimento da filosofia clássica? Se concebermos que o que podemos chamar de modo ainda rudimentar de “real” não se deixa representar nos idiomas das identidades e que, pelo contrário, a realidade se expressa de modo múltiplo e não classificável, a metafísica sexual ou cis-logismo (como prefiro chamar, que se sustenta na identificação entre sexo, gênero e, se possível, orientação sexual) instala-se sobre a destonalização dessas diferenças, dividindo-as a partir dessa matriz que cunha nos corpos o que se entende por heteronormatividade, que nada mais é que o padrão de norma concebido a partir dos pretensamente bem definidos lugares de macho e fêmea. E a desconstrução dessa topologia ou topografia, que incide diretamente nos corpos a partir da determinação dos órgãos reprodutivos como únicos órgãos sexuais (como mostra Preciado), só se torna possível a partir da criação de modelos de resistência a essa imposição artificial.

Tal resistência, também maquínica (pois não poderia ser de modo algum uma aposta na verdadeira natureza humana, já que qualquer concepção de natureza seria justamente o problema), deveria, portanto, ter um tríplice plano de ação: primeiro, dando prosseguimento a pesquisas como as de Foucault, Butler e mesmo alguns apontamentos de Derrida, uma desconstrução dos conceitos tradicionais de sexualidade; em segundo lugar, mas ao mesmo tempo, posto que se soma à tal desconstrução conceitual, uma incorporação de novas experiências sexuais na matriz filosófica, para que a materialidade do sexo possa ocupar um lugar privilegiado nas análises filosóficas, como faz tão bem Preciado; e, por fim, um terceiro e consecutivo golpe, que, ainda não realizado de modo efetivo, se somaria aos outros, a urgência de um olhar cuidadoso e a incorporação de outras mitologias sexuais no corpus filosófico, sobretudo no que diz respeito aos discursos não-ocidentais, que, forjados a partir de outros cunhos, poderiam abrir o pensamento para tantas outras noções de sexualidades e de possibilidades de relação para além da topologia homem-mulher que mostraria que há mais entre o céu e a terra do que concebe nossa vã heterofilosofia.

18 de Outubro de 2016.

DO MESMO AUTOR

Os primeiros sons do futuro

Rafael Haddock-Lobo

Professor do Departamento de Filosofia e
do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ

09/11/2016 • Coluna ANPOF