Metametafísica, metafísica e física quântica

Raoni Arroyo

Pós-doutorando em Filosofia (Unicamp); pesquisador visitante na Università degli Studi Roma Tre, em Roma.

Jonas R. Becker Arenhart

Professor Associado do Departamento de Filosofia da UFSC; membro do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMA.

22/03/2024 • Coluna ANPOF

A metafísica da ciência é um tópico amplamente debatido nos últimos anos, envolvendo a relação entre a metafísica, a ciência propriamente e a filosofia da ciência. Em geral, a ênfase recai sobre a epistemologia da metafísica analítica (doravante apenas “metafísica”), isto é, no questionamento sobre como a metafísica, tradicionalmente entendida como a disciplina que versa sobre as estruturas fundamentais da realidade, pode produzir conhecimento confiável. Uma vez que a metafísica alegadamente versa sobre a estrutura fundamental da realidade, a questão central tratada na investigação da epistemologia da metafísica é a seguinte: como os metafísicos podem fundamentar a verdade de suas alegações acerca da estrutura última da realidade? Essa é uma questão metametafísica.

Uma resposta é: a metafísica pode produzir conhecimento desde que esteja conectada de alguma forma com o conhecimento científico. Afinal, alguém pode dizer que ciência parece ter atingido um elevado grau de sucesso na descrição da realidade, e a metafísica poderia buscar se beneficiar deste fato. Uma associação com a ciência seria uma espécie de atalho para os propósitos de uma epistemologia da metafísica na medida em que a metafísica possa de algum modo pegar uma carona no sucesso da ciência. A questão é: como explicar a natureza dessa proximidade com a ciência? Como deve ser entendida essa conexão, para que a metafísica possa alcançar uma forma de conhecimento da realidade que se assemelhe ao tipo de conhecimento obtido na ciência?

É aqui que as dificuldades começam. As propostas explicitamente nessa linha são muito variadas, e vão desde versões mais brandas, sugerindo que a metafísica deve de algum modo simplesmente prestar atenção aos produtos institucionais da ciência (o que inclui teorias, artigos publicados em periódicos científicos, experimentos, entre outros), passando para versões mais moderadas, de que ela deve fornecer ferramentas conceituais e métodos de análise conceitual, até versões mais radicais, segundo as quais a metafísica deve estar de algum modo em continuidade com a ciência, seja em seus métodos, em seu conteúdo, ou ambos. Nesse caso, haveria sobreposição suficiente entre metafísica e ciência para que a metafísica também possa alegar alcançar uma descrição aproximadamente verdadeira da realidade, assim como a ciência alegadamente o faz. Essa última proposta é uma formulação do chamado “naturalismo” em metafísica: uma vez que a ciência tem suas credenciais epistêmicas garantidas pelo seu sucesso, a esperança é de que a metafísica (naturalizada) possa de alguma forma herdar tais credenciais epistêmicas da ciência. A metafísica deve ser, portanto, naturalizada, caso queira alcançar conhecimento confiável. Contudo, naturalizar a metafísica, isto é, mostrar a continuidade da metafísica com a ciência, é algo mais fácil de dizer do que de fazer.

Podemos exemplificar com um estudo de caso na mecânica quântica (MQ), onde o conteúdo ontológico é dado em grande parte pela interpretação—ainda que existam razões para crer que “interpretação” seja uma terminologia equivocada, ela é a usual nestes contextos, por isso será empregada aqui. No caso da MQ, uma interpretação é tipicamente tida como responsável por fornecer o conteúdo realista da teoria. De maneira breve, uma interpretação da MQ é uma resposta a um problema nos fundamentos da MQ, a saber, o problema da medição, que consiste em dizer como podem haver medições cujo resultado é um valor único para um determinado estado, enquanto a matemática envolvida descreve o estado de coisas como somas de estados. Como uma breve amostragem, podemos apontar as seguintes alternativas interpretativas mais populares na literatura da filosofia da física: a mecânica bohmiana pode ser vista como uma interpretação de variáveis ocultas (dinâmica) e partículas pontuais (ontologia); a interpretação de Copenhague (ortodoxa, adotada implicitamente nos livros didáticos de MQ) pode ser vista como uma interpretação de colapso (dinâmica) com consciências causais (ontologia); a interpretação everettiana pode ser vista como uma interpretação sem colapso (dinâmica) com funções de onda em uma ontologia de multiversos.

Se a naturalização da metafísica mencionada acima significa simplesmente a naturalização da ontologia, então, parece que, por um lado, o projeto naturalista foi concluído com êxito: podemos extrair da MQ seus comprometimentos ontológicos. No entanto, parece que essa perspectiva deixa de fora aspectos importantes da metafísica. Caso seja adotada uma distinção apropriada entre “ontologia” e “metafísica”, podemos apreciar melhor o que isso quer dizer. Quando individuadas pelo seu conteúdo, temos que a ontologia trata de questões de existência, e que a metafísica trata de questões de natureza. Até aqui, foi possível obter um catálogo ontológico diretamente das interpretações da MQ, isto é, foi possível indicar as entidades que existem de acordo com as diferentes interpretações da teoria—mas, de fato, nada aprendemos sobre a natureza dessas entidades, ou sobre sua metafísica. Seriam as entidades com as quais as interpretações se comprometem indivíduos, obedecendo a algum dos mais conhecidos princípios de individualidade (tais como a hacceidade, ou o princípio de identidade dos indiscerníveis)? A consciência postulada pelas abordagens com colapso seria uma consciência dualista, monista, ou algo diferente?

Nesses termos, o projeto de naturalização da metafísica poderia ser melhor apreciado como o projeto de naturalização da ontologia: afinal, a ontologia pode ser contínua com a ciência; a ciência nos diz o que existe, ao menos dentro de cada teoria. Assim, parece que podemos confiar na ontologia, na medida em que desejamos uma ontologia fundamentada na ciência, mas não na metafísica (lembre, entendida como a busca pela natureza das entidades). No entanto, aqui surgem questões metodológicas concernentes ao realismo científico, entendido enquanto uma postura filosófica frente ao sucesso da ciência que identifica o sucesso das teorias científicas com sua verdade. Nesse caso, a distinção entre realismo científico raso e profundo é oportuna, e pode ser apresentada com o seguinte exemplo: o realismo científico do tipo raso aceitaria que elétrons existem, mas recusar-se-ia a caracterizar tais entidades para além deste ponto. Já o realismo do tipo profundo é marcado pela caracterização metafísica sobre o tipo de coisa que é um elétron. Portanto, a ontologia (i.e. as questões de existência) não é suficiente para realistas do tipo profundo. Fornecer essa “imagem clara” seria oferecer uma resposta ao assim chamado “Desafio de Chakravartty”. De acordo com tal desafio, ter uma caracterização metafísica das entidades envolvidas em nossas melhores teorias é uma condição necessária para que possamos ter um conteúdo realista satisfatoriamente inteligível para tais teorias científicas. Seria preciso dar inteligibilidade às características da teoria sob as quais o realismo é clamado. De outro modo, essa atitude nem mesmo poderia ser chamada de “realista”—ao menos não nos termos estabelecidos pelo Desafio de Chakravartty.

Seria, portanto, exigida a obtenção de uma “imagem clara”, o que seria papel da metafísica. O Desafio de Chakravartty coloca o debate nos seguintes termos: uma visão de mundo não pode ser construída somente com a ciência; há uma lacuna metafísica que deve ser preenchida, caso queiramos ser legitimamente realistas acerca da ciência. No entanto, a ciência não fornece essa metafísica. Dessa maneira, o projeto de naturalização da metafísica acaba sendo incapaz de responder ao Desafio de Chakravartty e, consequentemente, incapaz de sustentar uma visão legitimamente realista da ciência. Note que esse é um desafio metodologicamente anterior ao desafio imposto pela subdeterminação ontológica implícita nas diversas opções interpretativas da MQ. O problema tem sido o de especificar exatamente como tal desafio pode ser cumprido. E é nessa problemática que temos atuado, em particular agora no novo Grupo de Trabalho da ANPOF sobre Ciências Físicas,  no desenvolvimento de temas tais como:

-      O desafio de Chakravartty e a exigência de uma camada metafísica como condição para o realismo científico;

-      Diferenças nos projetos de naturalização da metafísica e da ontologia;

-      Suporte positivo vs suporte negativo da ciência para teorias metafísicas;

-      Formas de interação epistemicamente construtiva entre metafísica e ciência;

-      Diferentes formulações da tese naturalista e suas perspectivas de aplicação para o caso da metafísica;

-      O papel da ciência na epistemologia da metafísica;

-      Relações específicas entre ontologia, metafísica, e as interpretações da mecânica quântica;

-      Discussão sobre as metafísicas de individualidade e não-individualidade na física.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.