Michel Henry e as Palavras de Cristo: o que significa para o homem nascer de novo?

Symon Sales Souto

Doutor em Filosofia pela UFSM; Membro colaborador do CLAFEN (Círculo Latino-Americano de Fenomenologia); Membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea da Anpof

28/02/2024 • Coluna ANPOF

Michel Henry defende que a realidade dos homens coincide com a realidade de Deus, na medida em que, é materialidade carnal e invisível, sem ser paradoxal, pois se dá sob o Fundo-comum, isto é, no Arqui-Filho que, em sua relação recíproca com o Pai, nos oferece o fôlego da Vida. Estas foram, aliás, as mesmas palavras de Cristo. Conforme escreve João, o mundo e sua verdade tiveram início, no entanto, o Verbo era desde o início; e “Ele estava no princípio com Deus” (Jo 1, 2), pois era o próprio Verbo encarnado de Deus.

Conforme entendemos, Cristo veio a este mundo para dizer que todas as criaturas viventes possuem a vida n’Ele; que toda a vida que está na criação deriva d’Ele, ou seja, o espírito dos homens, seu fôlego de vida é, na realidade, o Verbo da Vida que o sustêm. O grande problema, conforme podemos observar consiste, em especial, no fato de que “Deus nunca fora visto por alguém” (Jo 1, 18). Como era possível acreditar que aquele homem, de linhagem conhecida, era o Invisível que mantêm e sustêm toda a realidade visível? Para responder a esta pergunta devemos recorrer, segundo Michel Henry, as próprias Palavras de Cristo sobre si mesmo e sua relação com Deus.

Aquele ‘homem’, cuja mãos faziam sinais jamais vistos por olhos algum, tinha uma mensagem que, a prima facie, não parecia tão simples. Vamos retomá-la a partir da enigmática resposta à pergunta de Nicodemos. Cristo lhe falou sobre um novo Reino, uma nova Verdade que “não tem precisamente nenhuma relação com a verdade que ressalta da análise dos textos ou de seu estudo histórico(HENRY, 2015, p. 10). Porém, o acesso para este novo Reino só era possível mediante um “nascer de novo” (Jo 3, 1). Mas o que isso significa? Como era possível um homem velho em idade retornar para o ventre de sua mãe já em descanso no sepulcro?

Na verdade, essa metáfora não dizia respeito ao corpo físico, mas a nossa carne, isto é, esse “Todo da realidade que escapa à história. E que lhe escapa em razão de seu conceito de verdade – mais radicalmente da definição ontológica de realidade que o subentende” (HENRY, 2014, p. 11). Ou seja, o Messias não lhe falava de um nascimento físico, mas o derribe do edifício do conhecimento, o recomeço da Fundação, o abandono do velho em prol de uma nova natureza com novos princípios e até mesmo uma nova teleologia que começaria desde o agora em prol de uma vida em comunhão com Deus. Nas palavras de Jesus, “todo aquele dentre nós que não renunciar a tudo quanto de mais estimado possui não podereis ser meu discípulo” (Lc 3, 33).  Essa foi a mensagem que durante séculos e séculos têm sido subjugada, ocultada, menosprezada. Mas, porque?

O homem natural precisava para Jesus, como em um giro copernicano, abandonar a corrupção do pecado em prol da suprema excelência do amor, ou seja, nascer de novo significa para o homem caído, corrupto, avarento, aquele que mente, aquele que trai a confiança, o injusto, o assassino reconhecer, em primeiro lugar, que Jesus é o Filho de Deus igual ao Pai (Jo 5, 16) e, a partir disto, assumir uma nova natureza digna de ser chamada de filho de Deus.

As leis pareciam ser mais preciosas que o verdadeiro coração quebrantado, no entanto, todo esse esforço desagrava a Deus. “Qual de vós, se seu filho ou seu boi cai num poço, não o retira imediatamente no dia de sábado?” (Lc 14, 03). Nessa passagem Jesus não desqualifica a lei, mas “ante o surgimento nu da vida em suas formas mais banais, as prescrições ideais da lei perdem todo crédito” (HENRY, 2014, p. 26). “És mui precioso para mim, e mesmo que seja alto teu preço, é a ti que eu quero” (Isa 43, 4).  

Fora preciso que o Verbo de Deus se encarnasse, que abandonasse a glória e majestade de seu Reino para habitar um mundo tão caído e distante, a fim de, reconciliá-lo consigo mesmo e, todavia, séculos depois urge ainda a necessidade de ‘ver’ se suas Palavras foram capazes de legitimar tal promessa, isto é, “saber se essa presença do Verbo de Deus no Cristo é apenas um artigo de fé ou se, ao contrário, ela se revela por si mesma, em sua própria verdade” (HENRY, 2014, p. 28).

Conforme arguimos, Cristo veio a este mundo dizer que o ser vivo não é semelhante ao corpo, as coisas úteis da vida cotidiana e que recebem dela o seu valor. Somos soi-même; carne vivente, isto é, feitos de impressões, de desejos e esforços para satisfazê-los. Esse segredo de nosso ser, nosso coração, é uma carne invisível e patética que define nossa realidade. Nas palavras de Michel Henry, ela é uma “carne impressional, dinâmica e patética que faz de nossa condição encarnada o que ela é” (HENRY, 2014, p. 23-24). Retomemos então, a partir disto, o significado de nascer de novo.

Jesus estava dizendo que a definição de homem tal qual o mundo estava habituado não dizia respeito à Verdade. Ser vivo é “aquele que extrai sua realidade da afetividade da Vida e, assim, como ser vivo que não cessa de experimentar-se a si mesmo” (HENRY, 2014, p. 19). Em outras palavras, sofrer o que se é e gozar de si não é devedor de si mesmo. Trata-se de um dom. É o Espírito quem vivifica e, por esta razão, ninguém vai ao Pai senão por intermédio d’Ele (Jo, 14, 01). Tornar-se um vivente, por conseguinte, é ser embebedado por Tua Graça, ser coberto pelo teu Manto, é coparticipar de seu Reino (Jo 6, 63 -65).

Assim, nascer de novo significa comer o pão da Vida. Implica em aceitar essa nova Verdade que não está atrelada a verdade do mundo ao qual os homens estão inclinados. Ter um novo nascimento é, portanto, reconciliar-se com Deus recebendo a sua mensagem e, através dela, ter εξουσ?α de ser chamado de filho e, especialmente, filho de Deus. Nascer de novo; renascer, é estar em comunhão com o espírito de Deus reconhecendo o verdadeiro amor do Pai e, a partir disto, poder coparticipar da Vida eterna. Esse é, para Michel Henry, o significado da Salvação segundo as Palavras de Cristo.


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