Não falta capacidade, falta igualdade de oportunidades e de condições de vida!

Rafael Costa

Professor da Escola de Aplicação/UFPA

11/03/2021 • Coluna ANPOF

Retorno à discussão sobre a realização do Enem em um contexto de pandemia,[1] porque me parece que o mais evidente, dentre os muitos problemas explicitados por essa situação, não foi resolvido e nem sequer razoavelmente amenizado nesse caso. Este problema, que está no cerne de muitos outros problemas sociais e educacionais, é o da estrutural desigualdade de oportunidades e de condições de vida entre privilegiados/as e subalternizados/as, constitutiva de sociedades estruturadas pela exploração e opressão de determinados grupos sociais por outros, como o é a sociedade capitalista neoliberal, em que nos encontramos.

De um lado, estudantes de classe média e ricos/as que, em sua maioria, conseguiram manter suas atividades letivas virtualmente e tiveram condições de respeitar o isolamento social e adotar as medidas sanitárias prescritas. Do outro, estudantes pobres que viram suas atividades letivas bruscamente interrompidas (justificadamente, por motivos sanitários), sem acesso ou acesso de qualidade à internet e aparelhos eletrônicos. Muitas vezes sem condições de respeitar o isolamento social e medidas de saúde – o que coloca a sua sobrevivência em risco!

Associado ao problema da desigualdade, ora acobertando-o ora sendo por ele justificado, está o problema do predomínio da ideologia meritocrática. Sob a divisa, que se pretende moralmente justificável, de que os prêmios e as penas devam ser distribuídos de acordo com o desempenho dos indivíduos em determinada função ou atividade, o que se esconde é um esforço sistemático, nos âmbitos social e político, com maléficas consequências educacionais, para impedir o acesso, daqueles/as que fazem parte das classes e grupos explorados e oprimidos, à condições de vida digna e às oportunidades de preparação adequada para o exercício das funções e à realização das atividades a que os membros de nossa sociedade são convocados/as, sobretudo das funções e atividades de maior prestígio social.

Sem acesso a condições de vida digna (acesso a serviços, direitos, instituições, espaços etc.) e preparação de qualidade para o exercício de determinadas atividades e funções (educação de qualidade, lazer, diversificação cultural, infraestrutura educacional consistente, acesso aos meios tecnológicos e virtuias etc.), não há como aqueles/as que são oriundos/as dos grupos subalternizados competirem de igual para igual com aqueles/as que são oriundos/as dos grupos privilegiados. A competição nesse contexto, salvo raríssimas exceções, já está decidida e a meritocracia parece justificada. Se os/as subalternizados/as “não são capazes” de realizar essas atividades e funções, não devem exercê-las e, assim, não devem receber o prestígio social que delas deriva. Agora, se os/as privilegiados/as “são capazes” de realiza-las, é “justo” que as realizem e, assim, colham os benefícios da inestimável contribuição que oferecem “à sociedade como um todo”.

Enfim, de forma sofisticada e cruel, a própria subalternização estaria, pelo poder do mérito, justificada: aqueles/as que “não são capazes” de exercer essas funções e atividades, via de regra gerenciais, não devem gerir a sociedade, devem, “por certo”, estar subordinados/as àqueles/as que se mostram “tão capazes” de as executar. E a desigualdade estrutural será, consequentemente, perpetuada: sem poder ascender socialmente, em virtude de sua “incapacidade” de exercer aquelas funções e atividades de maior prestígio social, os membros dos grupos subalternizados não poderão oferecer, às suas novas gerações, o acesso às condições de vida digna e às oportunidades de preparação adequada que lhes fora propositalmente negado.

Contudo, considerando a estruturação exploratória e opressiva da sociedade, não se pode afirmar que falta capacidade aos/às subalternizados/as! Falta igualdade de oportunidades e de condições de vida digna! Falta a tão temida, pelos grupos exploradores e opressores, justiça social! Falta a tão almejada e buscada, pelos grupos explorados e oprimidos, restruturação da sociedade, o fim da exploração e da opressão!

Essa restruturação se afigura, e parece que cada dia mais, como um objetivo que jamais se realizará. Para muitos/as, constitui, no sentido lato ou estrito do termo, uma utopia: um sonho impossível de realizar ou um não lugar. Porém, se a revolução parece um amanhã que nunca chega, a resistência é a tarefa de cada dia. A batalha, a vitória e a derrota cotidiana (digo derrota, porque nem sempre se consegue barrar as injustiças).  A resistência pavimenta o caminho da revolução. Marca posição. Se não consegue avançar, ao menos busca impedir o recuo. Tira o sono de quem explora e oprime, porque denuncia que o pesadelo dos/as subalternizados/as tem sua causa na estruturação da própria sociedade, e que os/as que dele se beneficiam fazem de tudo para que o sonho revolucionário jamais se realize ou nem mesmo pareça um sonho.

Tudo é feito para parecer que a realidade é marcada, em oposição à “fantasia utópica dos/as revolucionários/as”, na qual “tudo seria possível e permitido”, por uma espécie de fatalismo, que determina que desigualdade, exploração e opressão são intrínsecas à sociedade. Um fatalismo cruel, reiterado sistematicamente, como estratégia de naturalização e, portanto, irreversibilidade das desigualdades sociais, como nos alerta insistentemente Paulo Freire.[2]

Seguindo pela trilha do que “parece” ou é “feito parecer”, chamo atenção para o que toda essa perversa articulação entre desigualdade, exploração e opressão, em associação com a ideologia meritocrática, pode provocar na formação da subjetividade dos/as jovens pertencentes aos grupos subalternizados e na construção da imagem que eles/as têm de si mesmos/as (sua autoimagem).

Partindo do princípio de que somos seres cognitivos: seres que constroem seu modo de existência de acordo com as informações que adquirem e tomam como verdadeiras ou falsas acerca do mundo e de si mesmos; e de que a construção do nosso conhecimento é, até aqui ao menos, fundamentalmente social, o que faz de nós, por conseguinte, seres igualmente sociais (ou vice-versa); a socialização, cujo objetivo é fazer com que construamos a nossa existência em conformidade com a sociedade em que nos encontramos ou que desejamos construir, constitui, seja em suas formas difusas ou sistemáticas, o principal processo cognitivo de que participamos, que parece acompanhar as demais formas de conhecimento de que dispomos: toda produção e aquisição de conhecimento seria uma forma de socialização, de reiterar ou desmentir informações visando nossa adequação à sociedade de que fazemos parte.

A socialização, portanto, condiciona nossa subjetividade, entendida em sentido lato, nossos modos de pensar e sentir e, consequentemente, nossos modos de pensar e sentir a nós mesmos/as, o que chamo aqui de nossa autoimagem.

O problema, então, é que numa sociedade que se estrutura a partir da exploração e opressão, e da consequente desigualdade que ambas impõem, e reivindicam para a sua manutenção, tentando justifica-la por aquele suposto fatalismo a que nos referimos acima e pela meritocracia como ideologia, a socialização é predominantemente determinada por esses elementos. O principal processo cognitivo de que participamos, então, traz no seu cerne, nem sempre de forma explícita (mas reiterada), um conjunto de informações que nos diz que a realidade é fatalmente desigual, de que a distinção entre “os/as melhores e os/as inferiores” é inevitável, daí a “natural” e “benéfica” ingerência que aqueles/as têm sobre a sociedade. “Natural” porque “merecida”, haja vista a excelência com que desempenham as funções de maior prestígio social. “Benéfica”, porque parece lógico que o melhor é que a sociedade seja dirigida por seus melhores membros.

Do outro lado, aprendemos que há uma gigantesca parcela da humanidade que, infelizmente, parece ser incapacitada para a adequada execução daquelas funções, parece incapacitada para a própria adequação à sociedade, parece ser humanamente inferior, fadada, portanto, ou ao comando daquela “elite” ou ao que seria uma espécie de desvario coletivo, um descontrole absoluto, a destruição da sociedade como um todo, ou seja: ao autogoverno dessa massa por si mesma

Em face disso, aqueles/as que são colocados/as entre as fileiras dessa gigantesca parcela, que é feita parecer como humanamente inferior, são ensinados/as a pensar e a sentir sob o signo de sua suposta inferioridade, pensam e sentem a si mesmos, caso não lhes seja ensinado o contrário reiteradamente, como inferiores, como se o prestígio social não lhes fosse possível, como se não fossem capacitados/as para a excelência, como se tivessem de se contentar com a subalternização que lhes é imposta e, quando muito, com a migalhas que a meritocracia lhes pode conceder. Enfim, sendo forçados/as a formar sua subjetividade e autoimagem sob essa lógica da desigualdade, é a autoestima dos explorados/as e oprimidos/as que é, dentre tantos outros aspectos, também destruída!

Como seres cognitivos, sermos forçados/as a conhecer a nós mesmos/as como seres inferiores, e não inferiorizados/as, como se essa inferioridade fosse um traço genético do grupo a que pertencemos, pode destruir a estima que temos por nós mesmos/as, o que é cruel em qualquer idade da vida, mas, que na juventude (e infância), uma fase de reconhecida complexidade e fragilidade, pode ser ainda mais perverso e fatal. O combate à desigualdade social é, também, questão de saúde mental, uma vez que a destruição da autoestima leva, geralmente, ao adoecimento psíquico.[3]

Por isso, devemos sempre lembrar a esses/as jovens, que não lhes falta capacidade! Falta igualdade de oportunidades e de acesso a condições de vida digna!

 


[1]Abordei o tema na “Coluna Anpof” em 30/06/2020.

[2] 1987, 2003, 2014.

[3] FANON, 2018.

DO MESMO AUTOR

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Rafael Costa

Professor da Escola de Aplicação/UFPA

30/06/2020 • Coluna ANPOF