Neoliberalismo, subjetividade e crise da democracia

Vinícius dos Santos

Docente do Departamento de Filosofia da UFBA

02/12/2016 • Coluna ANPOF

A eleição de Donald Trump à presidência dos EUA acendeu um alerta global. Particularmente, porque parece desnudar algumas das mais agudas contradições das chamadas “democracias ocidentais” contemporâneas. Com efeito, não por acaso, a questão que atravessou a cena política desde o último dia 09/11 pode ser resumida do seguinte modo: como teria sido possível que, em uma democracia consolidada como a norte-americana, um fenômeno de viés proto-fascista, como a candidatura de Trump, pudesse prosperar?

Este texto propõe uma resposta a essa indagação que não se pretende exclusiva, mas que, dentro dos limites que o espaço impõe, visa realçar aquilo que entendemos ser a causa subterrânea desse acontecimento. O que sugerimos aqui é que o significado dessa vitória se assenta, ainda que de modo aparentemente remoto, nos pilares do modelo de globalização dominante desde os anos 1980, comumente denominada “neoliberalismo”. Ou, para ser exato, em seu fracasso. Em linhas gerais, adotamos a perspectiva de que a fissura aberta na hegemonia neoliberal pela crise econômica de 2008 ganhou agora (somada ao Brexit, sobretudo) uma notável – e preocupante – complementação ético-política.

Nesse sentido, importa inicialmente destacar que, a nosso ver, uma das principais consequências da emergência da nova era de acumulação capitalista foi a correspondente formatação de um novo tipo de subjetividade. Trata-se da dissolução quase completa da antiga identidade baseada na articulação entre indivíduo e trabalho social – que, como Hegel bem observara, presidiu a constituição da subjetividade moderna –, em nome daquilo que Pierre Dardot & Christian Laval bem classificaram como uma “hiper-subjetividade”: o sujeito “desobjetivado”, ensimesmado, constrangido ao novo, à mudança, porque sem possibilidade de estabelecer laços efetivos com o mundo (materiais ou espirituais, geográficas ou jurídicas). Não que o vínculo entre sujeito e trabalho tenha desaparecido, ou que este último tenha perdido sua centralidade. Ocorre que, dada sua mútua imbricação, as mudanças profundas sofridas no mundo laboral não poderiam deixar de impactar na própria constituição e expectativas dos sujeitos contemporâneos.

Aqui, por mudanças profundas entenda-se, não apenas as revoluções tecnológicas inquestionáveis, mas, sobretudo: o esforço permanente de desregulamentação e precarização da mão de obra assalariada, a desindustrialização, a ameaça constante a direitos adquiridos etc. Ora, não apenas, do ponto de vista material, este cenário consolidou uma nova forma de proletarização – os trabalhadores “precarizados”, mais sujeitos às vicissitudes e à instabilidade da reprodução do capital, sem empregos fixos, sem direitos, com um acesso cada vez mais restrito à esfera do consumo –, mas, do ponto de vista ético, dissolveu a base dos antigos mecanismos de subjetivação, baseados na hegemonia das formas clássicas de trabalho e de seus processos de socialização correlatos.

Como era de se esperar, porém, essa dissolução agora cobra seu preço. Do novo “mundo do trabalho” seguiu-se a formação de uma massa de indivíduos sem identidade, fragmentados, abandonados à própria sorte, permanentemente ameaçados de serem lançados às margens de um sistema que, com a mesma velocidade, promete e retira suas perspectivas de futuro. Se o mundo globalizado, como explica David Harvey, caracteriza-se pelo imperativo da mudança permanente, pelo rápido giro temporal exigido pelos novos padrões de acumulação capitalista, o temor e a insegurança daqueles – a maioria – que não podem usufruir das eventuais benesses desse novo modo de vida, ou que se tornaram vítimas em potencial de sua volubilidade intrínseca, torna-se inevitável. Tanto quanto são inevitáveis suas repercussões éticas.

Com efeito, o cenário rapidamente descrito proporciona, dentre outras coisas, o surgimento daquilo que, há quase duas décadas, Immanuel Wallerstein alertava como sendo “a era do grupismo”. Ao afrouxamento do tradicional processo de subjetivação calcado na articulação sujeito-trabalho – logo, em determinada relação de pertencimento do indivíduo à sociedade –, surgiam tentativas múltiplas, difusas, frequentemente contraditórias, da sempre necessária constituição de subjetividade e socialização, a partir do atrelamento individual a um grupo qualquer que transmita algum sentido de pertencimento – uma comunidade religiosa, uma torcida organizada, uma gangue etc. Ocorre que, nesse momento de fragmentação absoluta, o “grupismo” exige, como condição de funcionamento, a construção de seu outro, a partir do qual o grupo, ente fechado em torno de seus membros, pode se reconhecer enquanto tal, garantindo sua unidade e coesão. Em outros termos, a identidade particular do grupo se forma pela oposição com seu exterior – o diferente, o adversário, o inimigo, o infiel.

O que se insinua aqui é que este quadro global complexo, em que elementos materiais, políticos e éticos se entrelaçam, permite a um outsider como Trump atacar um problema real – a crescente (ameaça de) penúria material provocada pelos processos econômicos e políticos de precarização do trabalho, com suas consequências objetivas e subjetivas – através de fórmulas simplistas, mas de fácil assimilação, porque seu eixo não se volta para o futuro, fatalmente incerto – e, portanto, indesejável diante da instabilidade corrente daquela massa –, mas se dirige à fixidez do passado (real ou imaginário, pouco importa). Numa palavra, promete restabelecer a “segurança” de um suposto tempo “glorioso”, “puro”, desde que tudo aquilo que se interpõe à concretização desse ideal – ou seja, todos aqueles “outros” que seriam responsáveis pelas transformações que culminaram no presente – seja removido. Desse modo, o magnata forneceu para seu eleitorado, acima de tudo, uma identidade grupal sólida (de cunho extremamente nacionalista, proto-fascista), capaz de transmitir àqueles que se sentem ameaçados pelos dissabores econômicos, e abandonados pela “política tradicional” – isto é, que sentem a falência da democracia guiada pelos políticos do establishment –, uma nova forma de integração e de subjetivação, calcada em um conflito permanente contra seu “outro”, mas no qual, aqueles que “nada têm a perder”, mostram-se dispostos a se engajar.

O desfecho desse cenário, evidentemente, é trágico: se a política é, por essência, democrática, e demanda uma ética de respeito e diálogo com o outro, como sugeria Hannah Arendt, o que se tem aqui é o triunfo da anti-política, de uma ética às avessas, por assim dizer. Ambas costuradas sobre o tecido da crise da sociedade capitalista neoliberal, mas que, como se nota, passam longe de resolvê-la.

Ademais, para além da importância que a eleição norte-americana tem para o mundo, é preciso notar que algo semelhante se passa, dentro de nossas idiossincrasias, no Brasil. Com efeito, na esteira do contexto de criminalização da esquerda (em sentido bastante amplo) que teve como ápice o recente processo de impeachment, o crescente apoio a discursos extremistas, o fortalecimento do poder das igrejas evangélicas, os projetos que visam suprimir o pensamento crítico-formativo das escolas etc., são sinais da construção progressiva de uma práxis política anti-democrática, de uma ética da beligerância típica do proto-fascismo que encontrou em Trump um porta-voz global. O que resta é saber se aqui, como lá, o desfecho será o mesmo.

02 de Dezembro de 2016.