Neutralidade na ciência e injustiça epistêmica

Susana de Castro

Professora do Departamento de Filosofia e do Programa em Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof.

Caroline Marim

19/01/2021 • Coluna ANPOF

Texto publicado no Le Monde Diplomatique Brasil no dia 15 de janeiro de 2021 em parceria com a Anpof.

No Norte Global, a noção de que os feminismos não representam apenas um movimento social e político, mas também uma epistemologia, é bastante conhecida. Epistemólogas sociais feministas como Sandra Harding, Linda Alcoff, Donna Haraway, entre outras, defendem que a experiência histórico cultural das mulheres justifica uma epistemologia feminista, um ponto de vista sobre o conhecimento, centralizado na experiência das mulheres no mundo, mulheres queers, lésbicas, negras, latinas, asiáticas, indígenas e brancas.  ais perspectivas de conhecimento são justificadas, pois validados pelos mesmos critérios dos saberes oficiais, tais como eficácia, previsibilidade e verossimilhança (Harding, 2015,xii). Esse mesmo argumento serve para a defesa de epistemologias indígenas das culturas e saberes subalternizados pelo predomínio da  epistemologia universalista europeia. O não reconhecimento da diversidade de saberes produzidos por mulheres fora e dentro da academia, mediante trocas de experiências escritas ou orais tem levado ao que se intitula injustiça epistêmica.

Tal injustiça epistêmica afeta diretamente as mulheres. Devido ao preconceito de gênero, seu testemunho não é levado a sério, embora muitas vezes não fique evidente que o preconceito tenha motivado a descrença na sua fala, como defende Miranda Fricker (2007). Primeiro, é uma injustiça por causa da falta de reconhecimento epistêmico que prevalece na manutenção de estruturas epistêmicas dominantes. Segundo, é comum nas instituições de ensino superior que coalizões, alianças e relações interpessoais estabelecidas nos valores epistêmicos “tradicionais” sejam constituídas como opressão epistêmica ou social e política. E terceiro, isso implica a perda do poder da mulher como agente epistêmico, negando sua autoridade, suas narrativas e afetividades.

No Brasil, pesquisadores brasileiros, avaliadores de agências de fomento, ainda creem na neutralidade e imparcialidade científica, ou seja, acreditam que uma ciência será mais objetiva e mais verdadeira na medida em que não esteja contaminada por “valores”. Pautados nessa ideia engessada de ciência julgam negativamente projetos que questionam esse paradigma, chamando-os de ideológico ou político. O pressuposto básico que justifica esse posicionamento está na velha e surrada diferença entre fato e valor. Ou seja, creem que há uma forma de acessar os “fatos” que não seja contaminada por elementos “subjetivos” do cientista, tais como seus interesses, pontos de vista, contexto histórico etc. Essa crença na possibilidade de que um sujeito treinado em método científico tenha, diferente de todos os outros pobres mortais, um acesso imediato ao real, aos fatos porque não contaminado de subjetividade é, como amplamente analisado, ela mesma uma perspectiva historicamente construída.

Originária da época moderna e da Europa, a ciência moderna e seu ideário de “ciência sem valor”, representa um projeto autoritário e onipotente de saber. Em uma época em que somente homens, brancos e europeus ingressavam em universidades e detinham credibilidade para dirigirem grupos de pesquisa, época, em que, como todos bem sabem, se duvidava da capacidade racional das mulheres e de todos os povos não europeus, os pressupostos de neutralidade e universalidade do método científico moderno no qual se baseiam as teorias científicas só podiam representar o universo de valores de seus autores. Ao silêncio imposto às mulheres e ao epistemicídio dos saberes locais dos povos colonizados pelas monarquias europeias durante o período da colonização, a “civilização” ilustrada respondia com as supostas benesses de suas descobertas científicas universais. Os cientistas europeus auto-intitulavam-se detentores das chaves de acesso aos saberes ocultos da natureza graças à bênção divina da ‘luz da razão’ (cristã) que lhes permitia ver fatos e construir teorias e saberes universais e neutros. Que humanidade é essa se os povos colonizados e escravizados, e as mulheres, eram desumanizados, vistos como menos humanos por suas proximidades com a natureza e as emoções?

O segundo auto-engano que cometem é o de não reconhecer o papel das respostas emocionais em suas próprias avaliações epistêmicas, de modo a entender como o envolvimento das emoções pode ser uma ajuda, ao invés de um impedimento, para nossos juízos avaliativos. Elas podem, na verdade, garantir o sucesso de nossas avaliações epistêmicas, não apenas como modos de reconhecer as falhas epistêmicas, mas principalmente demonstrando que ignorar a sua presença pode afetar na desconsideração de outras informações ou perspectivas relevantes na investigação científica.

Outro aspecto importante em não ignorarmos o papel das emoções é observar sua relevância epistemológica. Georg Brun e Dominique Kuenzle (2008) apresentam cinco funções epistêmicas que foram reivindicadas para as emoções: força motivacional, saliência e relevância, acesso a fatos e crenças, contribuições não proposicionais ao conhecimento e à compreensão e eficiência epistêmica. Atualmente é notadamente aceito que emoções e outros estados afetivos avaliativos regulam nossa atividade epistêmica, pois estão intrinsecamente conectadas a um conjunto representado mentalmente de padrões (normas, metas e valores) que regulam nossa atividade epistêmica.

O que, portanto, não pode ser ignorado é a importância das emoções nas escolhas narrativas, notando, principalmente, de que modo as emoções desempenham um papel crucial no processo de deliberação na escolha de teorias. Podemos lembrar, como Haraway (1991) aponta, que o interesse das feministas pela investigação epistêmica dentro dos contextos sociais levou ao desenvolvimento de diversos caminhos de investigação que explicitamente estabelecem conexões entre valores epistêmicos tradicionais e valores sociais e éticos em nossas práticas epistêmicas, e expandem a gama de valores epistêmicos em consideração. É extremamente problemático ignorar que nossas crenças não são afetadas pelo medo, ganância ou a confiança, que funcionam como sentimentos epistêmicos capazes de afetar a convicção, inferência ou estratégias cognitivas mais ou menos diretamente, como defende Ronald de Souza em seu “Epistemic Feelings” (2009). Se considerarmos, principalmente, aqueles que se encontram na esfera de poder dentro das instituições em todas as camadas, na maioria homens brancos, e mais seriamente o papel epistêmico das emoções na escolha de teorias, talvez possamos rever de que modo limitamos as interpretações de mundo àquelas hegemônicas.

Passados séculos desde a colonização europeia, continuamos colonizados. Chamar de ideológico qualquer projeto de pesquisa que assuma um ponto de vista feminista ou decolonial, ou pós colonial, nada mais representa do que mais uma vez pressupor que só há uma metodologia cientifica válida, a que se coloca hipocritamente como universal. Experiência pessoal é saber, e todo saber leva a posicionamentos políticos. A aproximação entre epistemologia e política é defendida por Haraway e outras epistemólogas feministas, que defendem a parcialidade e não a universalidade como condição que permite alcançar um conhecimento objetivo. A objetividade feminista resulta de uma objetividade encarnada, que propõe conhecimentos situados e a partir de um posicionamento crítico pessoal. Assim, somente uma perspectiva parcial promete uma visão objetiva. Desse modo, feminismos e perspectivas decoloniais ou pós-coloniais representam pontos de vista de análise tão válidos quanto qualquer outro. É evidente que rejeitar projetos que defendem o não universalismo da ciência e buscam apontar para outras formas de conhecer e fazer ciência representa a maneira como certa intelligentsia acadêmica defende seus privilégios epistêmicos. Verdade é poder, como todos sabemos.

Finalmente, não há teoria que não parta de uma experiência concreta, de tal maneira que o pressuposto de um conhecimento não marcado, neutro, parte da premissa falsa de que o conhecimento teórico não seja produzido a partir de um conhecimento situado na experiência do investigador .

A epistemologia social feminista não pode servir simplesmente descartada como ideologia, pois o saber construído a partir de um modo de encarar o mundo desde a perspectiva das várias experiências das mulheres ensejam práticas políticas transformadoras. Para evitar que continuem a ocorrer injustiças epistêmicas é fundamental ampliar as premissas de validação do conhecimento para além de seus paradigmas eurocêntricos e androcêntricos.

 

Referências

Brun, Georg.; Dogluoglu, Ulvi. & Kuenzle, Dominique (eds.). (2008). “A new role for emotions in epistemology?” In: Epistemology and Emotions. Ashgate Publishing Company, pp. 1-31

Fricker, Miranda. (2007) Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford: Oxford University Press.

Haraway, Donna. (1991) Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York and London: Routledge.

Harding, Sandra. (2015) Objectivity and Diversity: another logic of scientific research. Chicago: University of Chicago Press.

Souza, Ronald de. (2009) “Epistemic Feelings.” In: Mind & Matter, Vol. 7(2), pp. 139–161.