Newton da Costa

Gustavo Caponi

Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC

23/04/2024 • Coluna ANPOF

Me acuerdo, fue en Balvanera,
en una noche lejana,
que alguien dejó caer el nombre
de un tal Jacinto Chiclana.

Jorge Luís Borges

Não foi no bairro portenho de Balvanera. Foi a trezentos quilômetros daí, num bar do centro de Rosario. Foi, de todo modo, há muito tempo e já passada a meia-noite; no inverno de 1980 ou de 1981. Era numa mesa rodeada por uma espessa bruma de tabaco negro; e na mesa tinha uma garrafa vazia de tinto barato já escoltada por alguns copos de ‘ginebra’: o whisky dos oprimidos. Aí, nesse clima propício para as afirmações fortes, e no transcurso de uma longa conversa sobre os a priori kantianos, alguém anunciou que eles tinham caducado; e para justificar essa asseveração foram citadas quatro coisas que a análise kantiana não tinha previsto: as geometrias não euclidianas; o princípio de incerteza de Werner Heisenberg; o teorema de Gödel; e as lógicas paraconsistentes de um brasileiro chamado Newton da Costa.

Não me lembro de como acabou aquela conversa, nem aquela noite. É evidente, todavia, que sobrevivi a ela; e, seis ou sete anos depois, fui fazer pós-graduação em Lógica e Filosofia da Ciência na Unicamp. Aí se falava muito de Newton da Costa; mas estranhamente não cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Para isso tive que esperar que ele viesse a morar em Florianópolis e se vinculasse ao programa de pós-graduação em filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. Acabei sendo colega, então, daquele personagem quase mítico cujo nome alguém deixou cair naquela “noche lejana”: coisas boas que a vida às vezes nos dá; mas infelizmente também tira.

Neste mês de abril, no outono de Florianópolis, se foi Newton da Costa: o nome mais importante, mais reconhecido e mais relevante, da filosofia brasileira. De ele agora cabe falar, com plena veracidade e sem nenhum exagero, que viverá para sempre nas suas obras, as quais não deixarão de ser uma referência no campo da lógica matemática; e também poderá se dizer que ele viverá nos trabalhos daqueles que continuam e continuarão refletindo e pesquisando pelas trilhas que ele foi abrindo na sua longa e profícua carreira.

Newton da Costa era um dos últimos sobreviventes do “Brasil Bossa Nova”: esse Brasil ambicioso e destemido que, um dia, sem prepotência e sempre com muita delicadeza, tomou a palavra e falou de igual a igual para o mundo. E não estou pensando aqui em prepotências geopolíticas ou em solenes posicionamentos diplomáticos. Penso em arte, em ciência e em filosofia. Penso, por exemplo, em Oscar Niemayer que, desde a inesperada Brasília, marcou a arquitetura de todo o planeta.

Esse Brasil cujo “sambinha de apartamento” entrou na história do jazz pela porta principal e sem apresentar passaporte. Um Brasil no qual um grupo de geneticistas de populações podia romper com Theodosius Dobzhansky, o Papa dos ‘drosofilistas’ que os apadrinhava, e dizer: “as moscas são pouca coisa para nós, falemos de populações humanas”. Um Brasil no qual Nelson Papávero se envolvia na consolidação da Sistemática Filogenética, formando uma escola, sem esperar que outros, em outras latitudes, garantissem a hegemonia desse programa no qual eles apostavam. E foi nesse mesmo país que Newton da Costa, sem espaventos de profundezas germânicas ou de rupturas parisienses, mas com a leveza das canções de João Gilberto, ousou aquilo que justificou que seu nome sobrevoasse aquela mesa rosarina nos inícios dos oitenta: ele mudou e ampliou o mapa do transcendental, desenvolvendo essas lógicas paraconsistentes sobre as quais hoje trabalham tantos lógicos de todo o mundo.

Esse foi o Brasil que a ditadura “feriu, mas não matou”; e quiçá foi por essa ferida que o Brasil perdeu algo de sua desenvoltura e de seu cordial atrevimento. Em homenagem a Newton da Costa deveríamos dizer ‘chega de saudade!’; e recuperar a batida e o gingado que ele soube ter.


Texto publicado originalmente em A Terra é Redonda, em 20/04/2024. Acesse aqui


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