Nos lemos, mas não nos citamos - A filosofia acadêmica em tempos do Novo Qualis
Fabrício Pizelli
Doutorando em Filosofia na UNESP
18/12/2024 • Coluna ANPOF
A filosofia brasileira, nos últimos anos, envolveu-se em uma dinâmica pragmática em favor de sua sobrevivência. A lógica de produção científica, que antes era uma característica predominante das ciências exatas e naturais, agora permeia a filosofia e as ciências humanas, consolidando uma máquina acadêmica que prioriza a quantidade em detrimento da qualidade. Essa lógica produtiva baseia-se nas diretrizes do Qualis Capes Periódicos, que, em última instância, define o que é considerado um “bom” programa de pós-graduação, o que é um “bom” pesquisador e, mais criticamente, quem é digno ou não de financiamento. Entretanto, a filosofia, por mais desgastada que esteja, sempre demonstrou uma peculiar capacidade de enterrar os seus coveiros[1].
Com o anúncio de uma nova metodologia para a avaliação “qualitativa” da produção filosófica no Brasil, uma análise crítica se faz necessária para, mais uma vez, enfrentarmos esse desafio. A partir de agora, a classificação dos periódicos filosóficos será baseada nos artigos publicados, e não mais nas revistas em si. Nesse novo sistema, publicar em uma revista de alto prestígio, cuja espera entre submissão e eventual aprovação pode variar entre 1,5 e 2 anos, já não será suficiente. Três critérios passam a ser fundamentais: 1) número de citações; 2) número de downloads e menções em sites e redes sociais; 3) contribuição científica e impacto teórico.
Esses parâmetros seriam cômicos, se não fossem trágicos. Quanto ao primeiro critério, surge o problema que inaugura o presente texto: por que nós, pesquisadores brasileiros em Filosofia, não citamos nossos pares nacionais em nossos estudos? Talvez o fato de serem autores europeus ou norte-americanos atribua maior valor aos seus comentadores? Nossos pares nacionais, cujos trabalhos ouvimos atentamente em eventos, mesas-redondas e cujas ideias frequentemente discutimos, não produzem estudos de qualidade? Esses mesmos colegas, que enfrentam a burocracia universitária para obter recursos para deslocamentos e estadias, e que aceitam prontamente participar de bancas de arguição exaustivas, não são dignos de reconhecimento acadêmico? De qualquer forma, o número de citações, enquanto critério qualitativo dos artigos publicados no Brasil, convida a comunidade filosófica a romper, ao menos em parte, com a cultura de considerar o comentador estrangeiro como uma fonte de prestígio em seus textos. Parece que, muitas vezes, o recorte bibliográfico é feito com base no critério de ser um comentador estrangeiro, funcionando mais como um argumento de autoridade do que como uma contribuição realmente necessária.
Quanto ao número de downloads e menções em sites e redes sociais, o critério revela outra problemática: a determinação da relevância de uma pesquisa filosófica fica sujeita à métrica de algoritmos – facilmente manipuláveis por bots. Nada impede que alguém desenvolva uma inteligência artificial para baixar repetidamente certos artigos, inflando artificialmente seus índices de impacto. Essa lógica favorece grupos de pesquisa consolidados, amplia as desigualdades acadêmicas e marginaliza abordagens plurais no campo da filosofia. Por exemplo, um grupo de estudos voltado para um autor clássico da história da filosofia provavelmente terá uma base maior de participantes, que imediatamente se engajam quando um novo estudo é publicado, aumentando os índices de impacto. Mas, e as pesquisas sobre autores pouco estudados, que nem sequer têm um GT (Grupo de Trabalho) adequado na ANPOF? Esses artigos serão considerados menos relevantes do que mais um texto sobre a dedução transcendental? Pesquisas inovadoras, que articulam categorias ontológicas tradicionais para analisar problemas contemporâneos, podem ter seu impacto reduzido em comparação com as de grupos mais consolidados, perpetuando desigualdades na pesquisa filosófica.
Além disso, no que se refere à contribuição científica e, mais especificamente, à contribuição teórica nos estudos filosóficos, surge a questão: quem determina o que é relevante? E por que seria? Esse critério reforça as estruturas tradicionais da filosofia em detrimento de novos grupos de pesquisa. À medida que um ramo teórico emergente tenta ganhar força, ele acaba sendo desestimulado, já que sua avaliação qualitativa, segundo os novos critérios do Qualis, será inferior às abordagens mais tradicionais.
Por fim, essas mudanças na lógica da produção acadêmica nos convocam a repensar o estatuto de nossas pesquisas, tanto em um âmbito individual quanto na relação de nossos estudos com a comunidade filosófica. É essencial que essa comunidade se organize, ou, na próxima reconfiguração do Qualis, as ciências humanas, mais uma vez, poderão sair prejudicadas em nome de uma visão excludente de produção de conhecimento.
[1] GILSON, E. The Unity of Philosophical Experience. New York : Charles Scribner’s Sons, 1950, p. 306.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.