O argumento do peixe-lua
Aline Karen Cristina Canella
Doutoranda e mestre em Filosofia (PPGFIL/UCS)
28/03/2024 • Coluna ANPOF
Simone Weil (1909 – 1943) tinha uma ideia interessante sobre como deveríamos abordar a questão da guerra: a filósofa acreditava que seria ineficaz abordar tais fenômenos pelos fins perseguidos – como conquistar novos territórios ou riquezas. Por outro lado, seria mais frutífero examinar o caráter dos meios empregados. E com isso ela queria dizer que seria mais benéfico examinar as armas e estratégias utilizadas, mais ou menos como um técnico faria, a fim de determinar as implicações das ações meio pelas quais a violência necessária à guerra é empregada, e assim, ser capaz de trabalhar a filosofia política. Entendendo minimamente especificidades técnicas de determinada arma evita-se a armadilha de criar um discurso meramente moral (WEIL,1999, p. 455).
Ao mesmo tempo, devemos nos perguntar: em que consiste a guerra? Certamente ela não está somente nos conflitos armados. Quando nos deparamos com políticas públicas que se utilizam de condições biológicas para determinar quem vive e quem morre (e aqui estou falando de biopolítica) estamos enfrentando um outro tipo de “armamento”. O objetivo final é a soberania, e os mecanismos meio, que são aqueles, como Weil defenderia, que devemos investigar de maneira técnica, são as políticas públicas de gestão da vida. Mas a comparação que estipula “a guerra convertida em política, e a política convertida em guerra” não sou eu quem criou – a extraio de Achile Mbembe (1957 - ), no ensaio denominado “Necropolítica”, que se baseia justamente na ideia da morte como um mecanismo, um meio, para a soberania.
Minha intenção com os dois parágrafos anteriores é a de juntar duas ideias. A primeira, quanto a um método: entender minimamente especificidades técnicas. O objetivo desse método é trabalhar o meio. A segunda, quanto a um tema: o uso de condições biológicas como justificativa para a soberania.
Começarei com as especificidades técnicas da criatura pela qual desenvolvi uma obsessão torpe, justificada pela minha condição de autista. Estou falando do peixe-lua. O peixe-lua é um animal curioso. Contrariando toda a normalidade, essa criatura não possui uma bexiga natatória. É válido ressaltar que a bexiga natatória é um órgão essencial a todos os peixes. Ela funciona como uma bolsa de gás, e sem ela, o animal não consegue controlar sua flutuabilidade na água. É por esse motivo que muitos peixes-lua morrem, literalmente, entalados na superfície da água, ou comprimidos no fundo do oceano. Não bastasse isso, esse peixe ósseo tem o nome científico patético de “mola mola”. Ele também possui uma distribuição dentária completamente aleatória que o impede de fechar a boca, que, além de conferir a ele o aspecto de “boca aberta”, dificulta a sua alimentação (composta principalmente pelas venenosas águas-vivas). Por último (prometo que já estou terminando), você pode estar se perguntando como essa aberração da natureza não é extinta. E isso acontece por dois fatores (1) a carne desse peixe é tão asquerosa e rígida que não existem predadores naturais para ele. (2) este é o animal conhecido como um dos mais férteis do mundo, podendo colocar mais ovos do que qualquer outro tipo de animal. Um único exemplar é capaz de colocar mais de 300 milhões de ovos de cada vez.
A esse ponto, o leitor mais incrédulo poderia achar que eu usei este espaço apenas para despejar minha frustração quanto a existência dos mola mola. Mas peço um pouco de confiança. Considero que minha ideia de replicar o método de Simone Weil foi (intencionalmente) parcialmente cumprida. Isso porque não expressei as especificidades do peixe-lua sem aplicar aspectos da minha própria moralidade. Mas espero que até o final da leitura você, querido leitor, me perdoe. Não posso deixar de notar que isso confirma que a teoria da autora possui uma interessante complexidade e um nível instigante de dificuldade. De toda forma, de algum modo consegui fazer entender o aspecto mais importante para a análise que se segue: esse animal não possui utilidade prática para a subsistência da espécie humana. É inútil. Malogrado. Totalmente substituível pelas tartarugas-cabeçudas, que também se alimentam e fazem o controle das populações de águas-vivas e são esteticamente muito mais agradáveis.
Agora passamos para nossa segunda ideia: o uso de condições biológicas para a justificativa da soberania. A esse ponto da exposição talvez eu tenha te convencido de que as tartarugas-cabeçudas são superiores aos peixes-lua. E que isso pode justificar uma eliminação em massa dos primeiros, que afinal, não contribuem em nada pelo bem do planeta terra. E é exatamente esse o princípio contido em políticas eugênicas: uma falsa percepção, que se baseia em discursos que constantemente se utilizam pretensiosamente da utilidade e da estética. Nos deparamos com políticas pautadas em características biológicas, que impõe uma falaciosa noção de superioridade que pretende, em última análise, justificar a morte, e através da morte, manter a soberania. Mais uma vez repito: a discriminação pautada em características dos indivíduos é “arma” desta guerra, cujo fim é a manutenção do poder. E infelizmente é fácil demais cair na tentação de acreditar que o argumento que se utiliza de um fundo falaciosamente pautado na biologia e na utilidade para atribuir moralidade a características que são naturais de determinados corpos possui veracidade. Poderiam ser os nossos “peixes-lua” as mulheres. Ou então, a população LGBTQIA+. Pessoas pretas, PCD’s (e aqui eu pessoalmente me encaixo com maior intensidade), e assim por diante. Eu menti. Não desgosto do peixe-lua. Na verdade, tenho fascínio genuíno pela sua resiliência. Termino me desculpando com os “mola mola” por tê-los usado de cobaias.
Referências
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
WEIL, Simone. Réflexions sur la guerre, Œuvres. Paris: Gallimard, 1999, p.455
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