O BRASIL E A FILOSOFIA AFRICANA

Marcos Carvalho Lopes

Filósofo e professor na Universidade Federal de Jataí. Desenvolve a página e o podcast Filosofia Pop.

21/02/2017 • Coluna ANPOF

O filósofo norte-americano Cornel West definiu a filosofia afro-americana como “a interpretação da história afro-americana, sob as luzes de sua herança cultural e lutas políticas, como fonte de normas desejáveis que possam regular respostas para os desafios que hoje os afro-americanos enfrentam”. Podemos nos apropriar dessa definição narrativa e pragmática de West substituindo “afro-americana” por “brasileira”, “africana”, “afro-diaspórica”, “indígena” etc. Isso nos dá um ponto de partida interessante para afirmar que a possibilidade de uma filosofia brasileira depende de um questionamento profundo do processo de colonização, do massacre contínuo da população indígena, da herança escravagista e do racismo estruturante, da desigualdade extrema, do patrimonialismo, patriarcalismo, clientelismo, academicismo etc. numa genealogia de nós mesmos que propicie enfrentar os desafios de nosso tempo. Os termos dessa afirmação são sabidamente reducionistas (não abriga e nem pretende abarcar todas as formas de fazer filosofia), o que os fazem suficientemente polêmicos para inviabilizar qualquer debate amplo, já que traria como consequência uma grande modificação dos currículos de graduação em filosofia, com a inclusão de disciplinas sobre filosofia indígena, africana, decolonial, feminista etc. assim como, a promoção da reflexão sobre a cultura brasileira (popular e erudita). Vou me concentrar na defesa de uma disciplina sobre filosofia africana, seguindo numa direção diferente e complementar àquela proposta por Renato Noguera em recente coluna deste espaço.

No final da década de noventa, lembro-me de ouvir uma das minhas professoras de graduação na Universidade Federal de Goiás (UFG) reclamar do pouco espaço para estudar filosofia analítica. Em verdade, volta e meia na USP ela tinha que lidar com a desqualificação de W. V. Quine em questionamentos que colocavam a filosofia norte-americana como um oximoro: e isso existe? Juntamente com essa dificuldade, ausente a internet, estudar filosofia analítica era difícil porque faltavam textos em português (por vezes, era preciso trazer alguma bibliografia em espanhol e/ou deixar os debates contemporâneos – e autores como Wittgenstein, Carnap, Quine, Putnam, Davidson etc. – como parte de uma conversa distante da graduação). Hoje esse quadro mudou muito, pelo menos em termos de hegemonia, mas é curioso que quando alguém fala em “filosofia africana” precisa lidar com as mesmas perguntas sobre a existência, problemas de bibliografia etc. Deste modo, a ignorância de uma determinada tradição filosófica podia se petrificar em dogma, que impedia qualquer diálogo.

A filosofia africana, segundo Robert Bernasconi, é refém de um dilema em relação ao pensamento ocidental: ou é muito semelhante a ele, não justificando sua especificidade; ou é tão diferente que tem suas credenciais negadas como filosofia. Podem tentar mediar este dilema, atendendo os anseios narcisistas das paróquias da razão, mostrando que existem companheiros de crença e linguagem também na filosofia africana.

Em 1997, foi publicada a segunda edição do livro Knowledge, Belief, and Witchcraft: Analytic Experiments in African Philosophy de Barry Hallen e J. Olubi Sodipo, com prefácio de W.V. Quine, que destacava a relevância deste trabalho que usava a análise conceitual para pensar o lugar de termos como verdade, crença, conhecimento e evidência, na língua yoruba. Os autores se valiam da tese da indeterminação, proposta pelo filósofo norte-americano, para questionar a concepção de linguagem presente nos primeiros trabalhos “etnofilosóficos” desenvolvidos sobre a filosofia africana, que se contentariam em atribuir aos falantes de línguas africanas uma mentalidade pré-lógica, sem desconfiar que sua interpretação é que seria pré-lógica. Outros filósofos africanos de formação analítica que escrevem em inglês, como Kwane Anthony Appiah, Dismas A. Masolo, Emmanuel Chukwudi Eze e Kwasi Wiredu também se utilizam as ferramentas da análise conceitual ou da filosofia da mente para pensar seu contexto e desfazer preconceitos sobre a África.

Já V.Y. Mudimbe, na década de 80, descreveu uma genealogia foucaultiana sobre o modo como a África foi inventada como um paradigma de alteridade radical. Paulin J. Hountondji, que foi aluno de Althusser e Derrida, desenvolveu uma crítica radical da concepção unanimista, que considerava que por compartilhar uma determinada matriz linguística, automaticamente os africanos coincidiriam em suas crenças e valores. Já Tsenay Serequebererhan se vale da hermenêutica para pensar os horizontes de sentido da África, problematizando e procurando superar a dinâmica da violência colonial e emancipatória, enquanto Bruce Janz, Lucius Outlaw pensam a filosofia africana como necessariamente vinculada ao processo de Desconstrução – nos termos de Derrida –  de preconceitos do pensamento ocidental. Achille Mbembe articula em sua crítica da razão negra a ideia de um devir negro que nos remete inevitavelmente a Deleuze.   

Deste modo, diversos dos filósofos africanos contemporâneos se utilizam da sua formação (analítica e/ou continental) como ferramenta para pensar seu contexto (outras abordagens dispensam a filosofia ocidental em favor de métodos e paradigmas específicos). De todo modo, a filosofia na África não pode ser uma abstração escapista e tende a procurar se justificar numa direção pragmática. A divisão mesma entre analíticos e continentais se desvanece quando o objetivo é questionar os preconceitos do pensamento ocidental, sem cair no essencialismo, quanto a uma africanidade incomensurável. Questões metafilosóficas sobre a especificidade da filosofia africana, sua unidade, a linguagem em que deve ser escrita ou sua articulação com o pensamento feminista e diaspórico desvelam a problematização do tipo de expectativa filosófica que fez com que no processo de descolonização africana diversas nações surgissem com seus respectivos “reis-filósofos”. A promessa de que uma perspectiva teórica e filosófica que oferecesse consciência para a nação em sentido amplo (por vezes, falando em pan-africanismo), seria a liga necessária para a emancipação da violência colonial, reencenou como farsa a ideia da elite iluminada que espalha suas luzes. Mas para sair da grande noite essa filosofia essencialista mostrou-se cega. O desafio de construir outras possibilidades e caminhos traz novas questões e problemas para a filosofia africana, que em muito são semelhantes àqueles que o Brasil enfrenta. Por isso, a filosofia africana pode nos ensinar bastante sobre como suplantar as diferenças de formação encarando e buscando soluções para problemas efetivos. Por que não fazemos o mesmo uso contextualizado de nossa formação?

Existe uma dificuldade específica nesta disciplina de filosofia africana que não acontece quando tratamos de filosofia europeia: é que ninguém se pergunta se pode ou não falar pelos “gregos”, afinal a Grécia Antiga é a fonte da Civilização Ocidental. Mas é fácil perceber que não estou autorizado a fazer filosofia africana (african philosophy), mas estaria para fazer filosofia afro-diaspórica (africana philosophy), afinal esta última é parte da filosofia brasileira. O importante é ter em vista com quem queremos conversar (ou até mesmo, se queremos conversar). A possibilidade de diálogos Sul-Sul, em que nossa autonomia e responsabilidade intelectual sejam pressupostos, é diferente da busca por reconhecimento na tentativa de herdar e continuar uma conversação que não nos reconhece como aptos a falar, como tocados pelo espírito da filosofia (em sua tradição europeia).

Neste momento em que a filosofia perde espaço no ensino médio, não podemos nos acomodar nas críticas em relação ao governo. É importante perguntar o que a academia filosófica tem feito para responder aos anseios e demandas da sociedade? Como os currículos de filosofia foram modificados para atender a necessidade de compreensão da filosofia indígena, africana e afro-diaspórica? Se não existem ainda modificações importantes nesse sentido, os egressos do curso de filosofia chegam nas salas de aula incapazes de exercer sua função docente nos termos que a legislação define. Então uma “especializaçãozinha” pode valer mais que essa graduação descontextualizada. Vale ressaltar, que muitos dos que desenvolvem trabalhos sobre filosofia africana e afrodiaspórica no Brasil precisam sair dos departamentos de filosofia, porque neles não encontram espaço. Obviamente, se houverem postos de trabalho, florescerão e multiplicar-se-ão o número de pesquisadores interessados no tema.  Em verdade, seria o caso da ANPOF promover bolsas, publicações e premiações para trabalhos que caminhassem nesse sentido. Sem mudança institucional não há como sustentar as transformações das práticas correntes, que nos condenam à irrelevância comparada.

 

 

ANPOF (biênio 2017-2018)

21 de Fevereiro de 2017

  

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