O cansaço da filosofia

07/05/2020 • Coluna ANPOF

Roan Costa Cordeiro 1

 

A impotência do discurso filosófico já foi denunciada tantas vezes que até nos cansamos. Mas, assim como a metafísica que se evola da Tabacaria, tal denúncia, na verdade, “é uma consequência de estar mal disposto”. Mais vale arrumar a mala. Na onda de outros que o disseram antes, vale afirmar que nosso problema consiste na incapacidade de pensar o presente, ou melhor, de pensar os eventos que se chocam sobre nós e com os quais pouco nos chocamos. Sim, disto o discurso filosófico pode ser acusado: de fazer com que não nos dediquemos com zelo ao tempo da irrupção, de não contribuir para nos debruçarmos, quietamente, sobre as dores e os prazeres dos dias: deste dia – de um dia.

Presa numa rede irredutível de artimanhas, de métodos, de sinais, de transmissões e descontinuidades, a filosofia perde o mundo como objeto de seu espanto e maravilhamento, ou melhor, distancia-se demais dele. Ela caiu no buraco como aquele Tales, diz-nos Diógenes Laércio, zombado por uma velha. Todavia, à diferença de Tales – que saiu do buraco com a ajuda da espectadora e pelo custo de uma admoestação: “esperavas ouvir estrelas?” –, insistimos em ficar por lá! Alguns até mesmo fazem dele a sua morada, especializando-se em
cabanas pré-moldadas e armadilhas. Um retumbante riso de escárnio chega até nós.

Antes de escrever este ensaio, dediquei-me a uma tentativa de réplica imaginária buscando pensar algumas declarações proferidas por lamentáveis figuras políticas que nos assombram diariamente. Afinal, combater a besteira e as muitas maneiras de dizê-la é uma tarefa que se impõe. Não nos esqueçamos nem por um segundo de que a filosofia é filha da cidade. Mas, quanto mais buscava clareza, mais me enredava numa malha de conceitos – como sabem, os trabalhos acadêmicos não passam em branco – e menos enxergava o que tinha diante dos olhos para enfrentar. A cegueira e o automatismo me impediam de me espantar com a catástrofe. Involuntariamente me impedia de pisar sobre ela e chegar ao
sentimento do que, simplesmente, acontece.

Ora, é preciso que digamos: o que está acontecendo é – não sabemos o que está acontecendo. Dado o espanto, temos então o maravilhamento. Só o espanto cansa, mas, como bem sabemos, há quem vença pelo cansaço, como os Catilinas no poder. Cansamos facilmente, animaizinhos que somos. A coruja pousa. Sócrates desperta. Também precisamos de chão. Daí, talvez, o primeiro passo para penetrar no evento seja, antes de tudo, admitir: “teu nome é evento”. Com isso, começaríamos a ter alguma chance. Alguns o compreendem, no acaso dos dados, com um leve senso de “oportunidade”.

Os dados abolirão o destino?

Antes de adentrar no novo, precisamos reconhecer que estamos diante do imprevisto e do imprevisível. A nuance entre esses termos é a sutileza mesma do tempo. Entre o que passou e o que será, ou melhor, entre o que não se podia prever e o que não se preverá. O evento tem dessas: ele irrompe e cinde num antes e num depois, passado e futuro – o seu espaço, sustento, é o ínterim, o instantâneo presente (qual gênio maligno, por hipótese, nos lançaria assim no meio do nada à espera de ser?).

Nesse efeito, vê-se que o evento implica para adiante. Mas também implica para trás, uma vez que, enquanto ruptura, incide sobre o que existe. O evento é um ímpeto. Ele dá continuação ao que começa. Aqui não há fim ou finalidade, porém, que possamos admitir de antemão. E recomeçam os problemas.

Assim, entrando aos poucos no novo, precisamos também admitir que não se pode reverter um evento. Seres políticos que presumimos ser, precisamos decidir – e já se disse que decisão e crise são siamesas. Atirados na ação, precisamos decidir em face do que se apresenta (e mal sabemos o que é) também projetando. Todavia, isso não exime de antemão os sujeitos imbricados na ação, que poderiam, como as ridículas figuras no poder, simplesmente dizer “peço escusas”. Pelo contrário, estamos amarrados inexoravelmente ao peso da escolha e da decisão e por elas respondemos, algo que apenas um acordo entre o passado (então o presente) e o presente (agora o futuro) poderia romper.

Surge uma cesura fundamental para cada um que ingressa no evento. De um lado, mortais que somos, temos de agir e pensar; nossas atividades não são cindidas, mas unas num corpo. De outro, mortais, como poderíamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo, se mal conseguimos fazer uma? Eis o impasse: só o enfrentamos pensando face a face com o que – ainda – não tem nome. Com a palavra, Beckett: “é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar”.

Agora nos despedimos, pois me chama o Esteves e já é tarde, muito tarde para a metafísica.

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1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPR e Mestre em Filosofia pela UNICAMP. Agradeço às sugestões de André de Macedo Duarte, Angela Couto Machado
Fonseca e Luiz Henrique Budant, cuja provocação rendeu (rendeu?) este ensaio.