O cavalo Caramelo

Felipe Augusto Ferreira Feijão

Bacharel em Filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza (FCF). Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

17/05/2024 • Coluna ANPOF

Precisamos de símbolos. O homem foi definido como animal simbólico[1] pelo filósofo Ernst Cassirer. Talvez o cavalo (não se tratava de uma égua como se pensou inicialmente) Caramelo, como foi batizado, fique como um dos símbolos dos horrores que acontecem no Rio Grande do Sul. O vira-lata caramelo, presente em todos os lugares, já é um conhecido representante da brasilidade.

A imagem de um animal de grande porte em cima do telhado de uma casa ilhada, resistindo por quatro dias, até que fosse felizmente resgatado é tão incomum quanto o que assola agora o estado gaúcho.

À primeira vista poderia parecer uma montagem, um meme. É claro que seria algo desrespeitoso para com a situação e com o povo que sofre, produzir uma mentira relacionada com o caos atual. Mas não são poucas as fake news que circulam sobre feitos e desfeitos atuais no Rio Grande do Sul. Eles não se contentam com o cotidiano, ou com as eleições. Parece que a crueldade da turma produtora de mentiras não tem limites, desconhece a dor, o sofrimento, o desespero. Faz parte do universo dessa mesma turma o negacionismo, os que dizem não haver aquecimento global.

As fotos e os vídeos da situação que castiga o povo gaúcho fazem lembrar de uma previsão para Fortaleza. Aliás, não só a capital do Ceará, mas o litoral brasileiro, pode, em 2050, ter parte do território invadido pelo aumento do nível do mar. Como ficarão as cidades litorâneas? Como será o cotidiano? Teremos uma vida urbano-aquática?

A natureza é dinâmica, reage, dá avisos, sinais. É bela e singela no canto dos pássaros, na formação de um arco-íris, mas mostra que é forte. O homem não cansa de atacar, de destruir. A ganância, o lucro, a cegueira pelo dinheiro desconhece a importância do cuidado com a natureza. Esse descaso gera uma resposta da nossa casa comum. Muitos negam o aquecimento global e a condição de salvamento emergencial do planeta. Mas é normal tanta chuva? É normal algo nunca visto antes na história acontecer justamente quando a natureza emite alertas?

O episódio do Caramelo nos faz lembrar que a fauna e a flora também estão sofrendo diante das enchentes, das inundações, das invasões da água. No RS, tantos cães em abrigos, refugiados. Vários foram os vídeos que comoveram as redes sociais com cachorrinhos em resgate. É difícil acreditar que a tragédia seja apenas natural, somente por causa das chuvas. Há certamente parcela de culpa humana, culpa política. Era previsível?

Uma multidão de pessoas está afetada, fora de suas casas, sem seus pertences, sem o que construíram durante a vida toda. Muitos são os mortos, os desaparecidos. Onde a água baixa, aparece o que estava submergido: a imagem de carros amarronzados pela água seria mais crível se fosse cena de um filme. E a natureza também padece. Diante da agonia ela tende a reagir, a responder. Se é tratada com exploração, com extração, com negligência e selvageria, reage como já está reagindo com acontecimentos extremos. Qual será o próximo evento catastrófico?

Infelizmente, podemos assistir ao que nunca aconteceu antes por ser improvável e inimaginável, com cada vez mais frequência. Qual será a próxima cidade, o próximo estado afetado pela soma de fatores naturais e humanos? O planeta, nossa “casa comum”[2], como chama o Papa Francisco, “geme e sofre dores de parto” (Romanos 8, 22).


[1] CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 50.

[2] FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’:Sobre o cuidado da Casa Comum. Vaticano, 2015: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html


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