O conceito de razão poética em María Zambrano

Genildo Firmino Santana

Mestre em Filosofia da Educação pelo Prof- Filo da UFPR. Graduado em Filosofia pela FAFIC e Pós-graduado em História do Brasil pela FAFOPAI. Professor na Escola Dom Bosco/PE e na FASP.

09/11/2023 • Coluna ANPOF

O conceito de Razão Poética, em Zambrano, necessita ser posto no contexto de sua Filosofia e de seu pensamento maior. A Filosofia de Zambrano, segundo Fernanda Henriques, quer responder três questões que lhe são cruciais: a) A realidade não é ser; b) A realidade não é transparência ou luz e c) a realidade é dinâmica vital, orgânica e, portanto, tempo.  

Para Zambrano a realidade não é só o que o pensamento pode captar e definir, mas ela é também algo que permanece imperceptível, indefinível e indizível. Nessa ótica, Zambrano aponta para a existência de realidades sem ser, uma espécie de lugares ou zonas que a linguagem não articula e não expressa. Nem a razão filosófica pode alcançar essas realidades. Reside, nesse conceito de realidades sem ser, de Zambrano, o limite da Filosofia em não abarcar o ser humano em sua totalidade. Por não expressá-las, não pode a Filosofia lhe dar luminosidade, visibilidade à luz da razão, não pode dar transparência à luz do saber que a Filosofia ocidental assumiu como único capaz de captar e dizer o real. 

Na construção de uma metáfora do cérebro e do coração,  Zambrano afirma que a realidade é interioridade e fluição. A Filosofia, ao dar privilégio à razão, simbolizada pelo cérebro, deixou escamoteado o polo do coração, de onde emana sua realidade indizível pelo cérebro. Assim, a realidade é dinâmica, complexa, e atemporal, não sendo fixa em determinada linha de pensamento, escola filosófica ou racionalidade. Para Zambrano, a experiência filosófica ocidental foi marcada por uma cisão original e, justamente por isso, é uma experiência frágil, paradoxal, erguida em areias movediças de uma consciência rompida.

Não pretende Zambrano um retorno às origens pré-platônicas da Filosofia, onde Filosofia e Poesia não conflituavam tanto entre si e se relacionavam linguísticamente, em suas posturas de rebeldia às verdades reveladas e traduzidas através do Mito. A Razão Poética não busca esse passado. A Razão Poética não assenta suas bases no saudosismo de um tempo/espaço perdido ou no ressentimento amargurado, no sentido de fazer reparações cirúrgicas nesse passado e devolvê-lo, agora curado, ao presente. Antes, aponta para um futuro, onde haja uma “reintegração da rica substância do mundo” no dizer de Fernanda Henriques. Retomar a unidade originária não implica retornar ao passado original. Essa retomada é possível, para Zambrano, através do diálogo, de uma dialética que recomponha essa unidade perdida. Ela é necessária para dizer o ser humano em sua completude, porquanto apenas captaram na história e captam no presente, fragmentos do ser humano e os dizem. Cérebro e coração. Lógico e logos, potências de pensamento, como dizem Deleuze e Guatarri, imbricadas, cingidas em uma atividade que permita ao homem fazer uma experiência do pensamento.

Fernanda Henriques aponta duas questões sobre a Razão Poética de Zambrano. A) Por que é que a racionalidade (entenda-se filosófica) tem de ser poética? B) Como é que a racionalidade pode ser poética?  Para responder essas duas indagações, diz ela que Zambrano insere a necessidade e a forma da racionalidade ser poética à medida que sua Filosofia quer responder a três questões que são: A) a sua origem comum, B) a disfunção total dos seus caminhos e C) a incompletude constitutiva de cada uma delas, como se vê no seguinte fragmento:

É a relação entre a origem comum e a diversidade dos caminhos individuais trilhados pela filosofia e pela poesia que determina, por um lado, a sua incompletude constitutiva, por outro, a sua atracção mútua e a impossibilidade da sua separação total e, por fim, a dimensão ontológica de ambas. Elas necessitam uma da outra, para suprir a sua limitação específica: a Filosofia precisa de se abrir à concretude do real e a Poesia necessita de se contextualizar no universal possível. Mas, por outro lado, a sua articulação é quase natural e legitimada pelo enraizamento ontológico comum que as sustenta. (HENRIQUES, 2016, p. 6).

Tendo uma origem comum, Filosofia e Poesia caminharam por estradas diferentes e se revelaram em sua incompletude de entender o humano ou a realidade como Zambrano a concebe, dinâmica, não-transparente e também como um não-ser.  Neste sentido, a resposta que Zambrano encontrou, ao forjar o conceito de Razão Poética, exige um compromisso e um pacto de entendimento entre a Filosofia e a Poesia. Entendimento que se torna possível através de um diálogo que propicie a ambas construírem seu modo de ser sem negar o da outra. Do ponto de vista da palavra e de sua relação com o filósofo ou com o poeta, Zambrano diz que o filósofo quer ser dono da palavra, enquanto o poeta é seu escravo. Essa postura frente á palavra e sua maneira relacional faz com que exista certa dose de humildade por parte do poeta e de pretensão por parte do filósofo. São relacionamentos distintos que findam por criar distintos métodos com a palavra. Enquanto o poeta recebe e a diz, o filósofo a possui e a manobra, transformando, assim, o Logos (a palavra em si) em Lógica (a palavra refletida, explicada). Conforme podemos ver em María Zambrano:

El filósofo quiere poseer la palabra, convertirse en su dueño. El poeta es su esclavo; se consagre y se consume en ella; se consume por entero, fuera de la palabrae él no existe, ni quiere existir. Quiere, quiere delirar, porque en el delírio la palabra brota en toda su pureza originaria. (ZAMBRANO, 1996, p. 42).

Zambrano defende que, diferente do que Platão pensa ao expulsar os poetas, e expulsando ele os revelou mais ainda, acusando-os de imorais, de a-éticos e incapazes de alcançarem a aretê, (virtude), expressa na vivência prática da justiça, os poetas possuem uma consciência e um gênero de consciência e uma lucidez que os torna fiéis – não sem dor, mas com valor – às forças divinas ou demoníacas que os possuem e que tornam mais heroicas suas existências. Para Zambrano, Baudelaire é o exemplo, “El Padre” de todos eles e que em Baudelaire se alcançou a plenitude da consciência poética, sendo ele também o ápice da ética poética, que é de todo modo uma ética diversa da ética filosófica. Assim diz María Zambrano:

En Baudelaire el processo del poeta parece haberse consumado. Es el padre, al par que redentor, de la poesía. Y la ha redimido por aquello que parecía faltarle: la conciencia. Esta conciencia que en Baudelaire alcanza la plenitude de su luminosidade, y por ello de su martírio, no fue menos heroica desde su comienzo. (ZAMBRANO, 1996, p. 44).

Afirma Zambrano que a Poesia lembra ao filósofo que o ser humano não é dono da palavra, da razão, que não pode possuir como se fosse uma propriedade particular, uma vez que a palavra é liberta, para todos. Lembra o poeta que a razão não pode se arvorar em único caminho para o ser humano. A Poesia também tem seu reino de verdade e de valor. Contra argumentando Aristóteles que afirmara na Metafísica que “todos os homens, por natureza, tendem ao saber”,  Zambrano pergunta “¿como si todos te necessitan, si tan pocos son los que te alcanzan?”, (Zambrano, 1996. p. 23). Como a razão se diz única e universal, se todos tem a razão, por que só alguns alcançam a verdade e outros não? Há uma possibilidade de resposta a essa questão quando se entende que pensar filosoficamente não é uma atividade natural do ser humano. Requer método, requer esforço, o que implica dizer que nem todos pensam de maneira filosófica. Já a Poesia pode ser alcançada por todos, pois ela não requer semelhante esforço do pensamento, nem método semelhante ao método filosófico.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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Genildo Firmino Santana

Mestre em Filosofia da Educação pelo Prof- Filo da UFPR. Graduado em Filosofia pela FAFIC e Pós-graduado em História do Brasil pela FAFOPAI. Professor na Escola Dom Bosco/PE e na FASP.

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