O diálogo e seu potencial transformador para as relações sociais

Renata Adrian Ribeiro Santos Ramos

Profa. de Filosofia UNEB e doutoranda em Filosofia (Unisinos)

25/02/2022 • Coluna ANPOF

A simples conversação, sem pressa, movimentada pela exposição de experiências de vida, fatos e opiniões, etc, parece ser uma prática com tendência social ao desuso em nossos dias, principalmente entre os mais jovens, fato pode ser explicado, parcialmente, pelo argumento da hipervalorização das novas tecnologias da comunicação e informação, admitidas em nossa sociedade como muito eficazes, quase irresistíveis e respondentes a crescente necessidade de otimização do tempo e produtividade. Então, se a simples conversação entre as pessoas vem sofrendo desgastes, o que dizer da autêntica e verdadeira conversação, da qual os resultados “ninguém pode saber por antecipação”? (GADAMER, 2015, p. 497)..

 Gadamer trata da incapacidade para o diálogo, na sociedade moderna, como uma questão preocupante, que se relaciona a frustação da abertura para o encontro e desenvolvimento de processos comunicacionais entre os homens; se manifesta como uma experiência de impedimento ou rompimento da possibilidade de comunhão entre as pessoas, sendo geradora de distanciamentos e estranhamentos sociais (GADAMER, 2001). 

Para este filósofo, sendo a capacidade para o diálogo “um atributo natural do homem” (GADAMER, 2011, p. 243), que se faz por meio da linguagem, a incapacidade para o diálogo constitui-se como uma objeção à esta vocação. Do ponto de vista subjetivo, a incapacidade se manifesta pela não abertura do sujeito ao processo de escuta do outro, produzindo, assim, distanciamentos sociais e objetificação das relações entre os homens. Do ponto de vista objetivo, nos acostumamos ao monólogo que caracteriza nossa civilização ocidental, e, neste sentido, a evolução de uma conversa verdadeira, fluída, tem sido desprestigiada, como algo que está em desuso social (GADAMER, 2011).

 A incapacidade para o diálogo, objeto de estudo da hermenêutica gadameriana, é uma força contrária, que prevalece na sociedade atual, se opondo ao desenvolvimento harmonioso das relações sociais e se caracteriza pelo progressivo esvaziamento dos pilares de sustentação das relações comunicacionais: o saber falar e o saber ouvir. Ora, se os sujeitos não dialogam tendem a se isolar, produzindo uma ruptura entre as ligas sensoriais que promovem a aproximação com o outro. Ainda, podem desenvolver uma equivocada percepção sobre a relação de si para o outro, no processo relacional, caracterizada pelo deslocamento da incapacidade de dialogar para o outro. Perante esse argumento, o não reconhecimento de si é o ponto crucial para compreensão do isolamento humano e incapacidade para o diálogo; é força motriz contrária, o fundamento do entrave. A incapacidade do outro é sempre também a própria incapacidade” (GADAMER, 2011, p. 259) e o isolamento deve ser entendido como “uma experiência de perda”, “é algo que sofre” (GADAMER, 2001, p. 100). Então, decorrente dessa incapacidade, em diferentes espaços de convivência humana, notamos que, existe uma tendência ao estabelecimento de posições unilaterais sobre temas diversos, que por vezes revela a presença da intolerância étnica, linguística, religiosa etc, com implicações diretas sobre a vida social, sobre os rumos da própria humanidade, isto porque a ausência de negociação produz distanciamento e posturas que se opõem à cultura da paz, como se pode notar em situações de conflitos entre povos, quando se subtrai a negociação da pauta, ferindo a diplomacia. Por isso, é importante ressignificarmos a dinâmica das relações sociais, mediante práticas fundadas no diálogo, para alcançarmos à necessária reviravolta ontológica da humanidade, que pode ser caracterizada pela busca contínua por um projeto de sociedade humanizado, solidário, “a fim de aprender a conviver mutuamente, e assim, talvez, adiar a auto-aniquilação ou mesmo evitá-la por meio de uma constituição mundial capaz de ser controlada” (GADAMER, 2001, p. 103). 

Aprender a conviver, desenvolver relações humanas fundadas no diálogo, que sejam possibilitadoras da superação de conflitos, nos mais diferentes espaços sociais e contextos geopolíticos: esta é uma proposta alternativa, viável, com potencial de modificações de realidades, pois quando os sujeitos se permitirem ressignificar o ato comunicacional, abrindo-se para serem parceiros de uma prosa fluida e verdadeira, há possibilidades de reconstrução dos vínculos, negociações e firmações de acordos. Assim, o diálogo se constitui em um mecanismo vital, uma chave para abrir portas diplomáticas entre pessoas que desejam firmar o entendimento, tendo em vista o bem comum, condição para a superação ou diminuição de conflitos. 

Portanto, o diálogo se constitui em uma importante estratégia, um fio condutor de entrelaçamento de interesses, capaz de contribuir na firmação de elos sociais fortes e duradouros, para que alcancemos, deveras, novos tempos para humanidade, caracterizados por transformações intersubjetivas entre os parceiros interessados nos acordos, movimento propiciador de novos cenários para as relações eu-tu-mundo. Afinal, do caos ou da beira de um colapso planetário, podemos ter esperança na construção de novos rumos para a vida em sociedade, desde quando a racionalidade humana seja concebida e desenvolvida, a partir do estabelecimento do reequilíbrio das relações sociais, com base na premissa de que o diálogo se constitui em uma força transformadora (GADAMER, 2011), pois: “[...] Onde um diálogo teve êxito ficou algo para nós em que nos transformou” (GADAMER, 2011, p. 247). 

 

Referências

GADAMER, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Traduzido por João Tiago Proença. Lisboa: Edições 70, 2001.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer; revisão da tradução de Ênio Paulo Giachini. 15 ed.-Petrópolis, RJ: Vozes. Bragança Paulista; Editora Universitária São Francisco, 2015.

GADAMER, H. G. Verdade e Método II: complementos e índice. Tradução de Ênio Paulo Gianchini; revisão da tradução de Márcia Sá Cavalcante-Schuback, 6 ed- Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Vozes: Editora Universitária São Francisco, 2011, (Coleção Pensamento Humano).