O eu, o outro e o mundo pandêmico
Marcelo Vinicius Miranda Barros
Doutorando em Filosofia pela UFBA; membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea e do GT Pensamento Filosófico Brasileiro da ANPOF
11/02/2021 • Coluna ANPOF
Marcelo Vinicius Miranda Barros
Doutorando e mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea da ANPOF
O prof. Dr. Waldomiro Silva Filho (UFBA) escreveu o ensaio “Atoleiro Epistêmico” para a coluna da Anpof, que trata a respeito da pandemia atual. Em sua análise, Waldomiro Filho afirma que “numa democracia a confiança epistêmica nos outros é algo absolutamente necessária”[1]. Essa afirmação nos faz não só concordarmos com ele, como adicionarmos que não somente na democracia, mas também na existência humana a confiança epistêmica nos outros é necessária.
Sartre disse que “é por meio dos conceitos do outro que conheço meu corpo”[2]. Temos, por falta de um termo melhor, o epistêmico existencial. Na pandemia, embora não somente nela, estamos lidando com a existência humana que é corpórea: refere-se a um vírus – no caso o Covid-19 – que invade o nosso corpo. Sendo negacionista ou não, esse vírus é uma espécie de alteridade para nós, ele pode ser simplesmente contornável para alguns, mas as suas consequências não são.
O feliz pensamento de Waldomiro Filho ao dizer que precisamos “do testemunho dos outros, pois dependemos de uma rede de cooperação epistêmica para conhecer partes significativas do mundo”[3], leva-nos a compreender que não podemos escapar – mesmo se for, simplesmente, para negá-la – da alteridade e do encontro com o Outro (o indivíduo, a ciência, a sociedade, a cultura etc.).
A pandemia evidencia para o ser humano o outro, a alteridade. O outro nos parece perigoso e, ao mesmo tempo, ele é tão necessário para significarmos o mundo que, agora, mostra-se sem significado de maneira mais acentuada devido ao caos pandêmico. Não que não havia caos antes da pandemia, mas ela tem agravado isso singularmente. Na atualidade, aumentou substancialmente, por parte das pessoas, a procura por tratamentos psicológicos para se fazer conhecer partes significativas do mundo que nos apresentam caóticas. A episteme – para nos valermos de Waldomiro Filho – revela-se, aqui, também através das ciências da psique, como ainda das ciências biomédicas em busca de vacinas.
Waldomiro Filho, ao falar do testemunho dos outros, reforça a alteridade que é apresentada de maneira tão evidente que uma pandemia e isolamento social são capazes de nos fornecer. Agora, a mobilidade do outro é perigosa para nós: ele pode nos contaminar e vice-versa (também somos um outro para alguém). A mudança da mobilidade devido à pandemia nos leva para outra forma de estar-no-mundo, outra forma de pensar e agir o mundo que nos cerca, porque o outro me interpela o tempo todo. Na pandemia isso se torna mais manifesto, a mobilidade do outro é perigosa por também mobilizar um vírus que é invisível a olho nu.
Tendemos a transformar essas mudanças nas relações intersubjetivas em falta, em perda, porque estamos perdendo alguma coisa que vivíamos antes: como a ida à praia ou a morte de um ente. O outro, então, tenta “roubar” o nosso mundo. Assim, despontam os negacionistas que gritam em nome de uma distorcida compressão sobre a liberdade de expressão e o direito de ir e vir. A questão é que não estamos sempre dispostos a reinventar, a refletir e a proferir: o que isso tem a dizer para mim? Não estamos dispostos, mas sempre somos obrigados a refletir. O outro sempre vai me interpelar. Há uma coexistência, eu existo e outro existe. Uma das bases da ética é você lidar com a questão de que outro exista ao mesmo tempo em que você existe, que ele deseja ao mesmo tempo em que você deseja. Isso é algo análogo à dialética hegeliana do senhor e do escravo.
Hegel afirma que “a consciência-de-si só alcança sua satisfação em uma outra consciência-de-si”[4], evidenciando a busca pelo reconhecimento. Com efeito, para provarem uma à outra a sua independência, devem-se mostrar que ambas são o que a outra também é: desejo e negação ou consciência-de-si. É devido a essa demonstração recíproca que se caracteriza a luta por reconhecimento, que é uma luta de vida ou morte com intento de demonstrar a sua independência. Mas, o senhor, a rigor, não é livre do escravo. Não se trata aqui de uma autonomia absoluta.
O pensador hegeliano Kojève vai trazer uma explicação bastante evidente de o porquê da luta de vida e morte não poder ser necessariamente entendida literalmente, já que, se assim fosse, cairíamos em um impasse existencial de reconhecimento. Isso fica mais evidente se caso levássemos de forma literal a luta de vida ou morte na dialética hegeliana do senhor e do escravo, já que ao morrer um dos adversários, desaparecia com ele esse outro desejo que era buscado por outro desejo. Assim, quem sobrevive não pode ser reconhecido por quem morreu – um morto não reconhece –, portanto, o sobrevivente não pode tentar se satisfazer e revelar a “sua” verdade. Kojève diz que “para que a realidade humana possa constituir-se como realidade reconhecida, é preciso que ambos os adversários continuem vivos após a luta” [5].
Nessa breve apresentação da dialética hegeliana, poderemos ver que jamais o senhor é senhor de fato enquanto no âmbito existencial, isto é, jamais o senhor é detentor do poder, porque ele precisa do escravo para ser o que é: um senhor. A sua verdade é questionável. Parafraseando Waldomiro Filho, se o senhor agir como um negacionista, “recebe os carinhosos eufemismos fake news e pós-verdade” [6].
Negacionismo é a alternativa de negar uma realidade social como maneira de esquivar de algo desconfortável. Vivemos o negacionismo científico em plena pandemia, seja retirando a credibilidade de uma vacina ou dizendo que a Terra é plana, por exemplo. No entanto, a rigor, os negacionistas não podem negar o outro, a ponto de falarem que não tomarão uma vacina, sem que as consequências venham: o vírus ao continuar circulando se torna propício a mutação – como realmente já está ocorrendo – e, assim, aquele que o nega pode ser contaminado por essa nova variante mais virulenta. Aquilo que era dito como “gripezinha” pode se tornar em algo que leve os negacionistas, ou os seus entes, à sequela ou à morte. Por isso que a vacina é um compromisso coletivo, não só individual, a maioria da população precisa estar imunizada.
A pandemia nos leva ao paradoxo da nossa existência: por mais que neguemos, somos sempre com o outro. Não somos o que somos sem uma rede de significação. Então, não somos absolutamente na nossa individualidade que criamos as coisas, é tudo sempre dialético como uma espécie de teia de aranha. Laurenio Sombra afirma que “nosso modo de agir e significar o mundo é sempre antecedido por uma configuração profunda, não totalmente consciente e explicitável, a que chamei de rede de sentidos”[7].
O que tentamos dizer é que a existência põe em questão o próprio sujeito frente ao outro, ou, valendo-nos novamente da relação do senhor e do escravo: o senhor é obrigado a obter uma crítica a novos modos de pensamento sobre ele mesmo enquanto senhor, mesmo que isso o revolte: referimo-nos ao impasse existencial kojèviano, ou, a falta de uma segurança de “sua” verdade, no termo hegeliano. Então, até se pode “contornar” o outro, mas não as suas implicações: o conjunto de fatos negacionistas que têm matado diariamente. Seguindo Waldomiro Filho, não há espaço para aventuras, senão, esse impasse existencial será o nosso adoecimento físico e mental, no qual uma alteridade se reafirmará cada vez mais: o vírus.
[1] FILHO, W. J. S. Atoleiro Epistêmico. Anpof. 02/02/2021. Disponível em: . Acesso em: 03/02/2021.
[2] SARTRE, J-P. O Ser e O Nada: Ensaio De Ontologia Fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 445.
[3] FILHO, W. J. S. Atoleiro Epistêmico. Anpof. 02/02/2021. Disponível em: . Acesso em: 03/02/2021.
[4] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 141.
[5] Ibid., 2002, p. 15.
[6] FILHO, W. J. S. Atoleiro Epistêmico. Anpof. 02/02/2021. Disponível em: . Acesso em: 03/02/2021.
[7] SOMBRA, L, L. O Ocidente como Problema Filosófico. Revista Ideação, n. 35, jan./jun. 2017, p. 198.