O médico, as crianças e o cozinheiro: uma denúncia platônica contra o absurdo de um tribunal de idiotas
Vicente Thiago Freire Brazil
Prof. da UECE
19/08/2021 • Coluna ANPOF
Na parte final do Górgias platônico, ali no ápice do debate com Cálicles (521d-e), depois de vaticinar prolepticamente a própria condenação pela injustiça de indivíduos perversos e em virtude da ignorância de juízes inaptos, Sócrates utiliza-se de uma incontornável analogia para demonstrar a condição aporética daqueles que, buscando o “supremo bem” da comunidade, tentam argumentar racionalmente com aqueles que são movidos pela satisfação da volúpia em sua instanciação mais baixa, isto é, aquela que instrumentaliza o outro com a intenção de autossatifazer-se de modo ilimitado, doentio e dantesco.
Retomando uma estrutura imagética já citada durante o embate com Polo (464d), o filósofo, no último ato dialogal, expõe o esforço inútil que é discutir a partir de uma estrutura lógico-veritativa com aqueles que são mobilizados exclusivamente por impulsos pantagruélicos.
Platão, articulando de maneira indissociável este contexto do Górgias com a questão central d’Apologia, apresenta uma estrutura dramática em que Sócrates está discutindo hipoteticamente aquilo que já havia acontecido como um trágico fato histórico. Para o filósofo de Atenas está bem claro que nem mesmo o melhor dos indivíduos (521d6-7), buscando o supremo bem (521d9), conseguirá convencer um júri de cidadãos infantilizados, ainda mais se este forem manipulados por um terceiro mal-intencionado.
A analogia socrático-platônica propõe um exercício ficcional com o objetivo de imaginar como seria o ridículo julgamento de um médico, comprometido com o conhecimento e a saúde coletiva, por um grupo de crianças que seriam aliciadas por um cozinheiro sem escrúpulos que as induz ao erro através de falácias reforçadas pela distribuição de iguarias entre eles (521e3-4). O par Medicina/Culinária é amplamente empregado no diálogo para demonstrar a distância entre arte e lisonja, ou ainda, entre ações que promovem a justiça para a alma e atitudes que apenas busca ludibriar a racionalidade alheia. Sócrates chega a indagar sobre como poderia o médico da analogia argumentar em defesa própria contra a acusação, feita pelo cozinheiro, de administrar um tratamento que impedia as crianças de empanturrarem-se de guloseimas, se as figuras infantilizadas fossem as próprias juízas (521e6-522a3).
Um leitor não familiarizado com a escrita platônica pode surpreender-se com relação à saída proposta por Sócrates para a superação desse caos deliberativo. Se considerarmos o fluxo dramático do Górgias, Sócrates/Platão simplesmente não respondem à questão final – o diálogo termina de modo aporético –, ou se o faz, realiza-o de modo muito precário por meio de um mito escatológico que articula a questão política com um forte argumento ético (523a-527a). Por fim, se a fatídica condenação de Sócrates for levada em consideração, a resposta socrático-platônica é ainda mais melancólica; poder-se-ia concluir que na prática, Platão estaria denunciando o absoluto fracasso de qualquer esforço deliberativo num embate entre razão/verdade/bem e insensatez/embuste/mal quando esse debate for mediado pela ignorância. Em termos literários, a arquitetura dramática do Górgias conclui-se de modo absolutamente trágico.
Há numeráveis e importantes paralelos entre a imagem platônica no Górgias e o estado-de-coisas vigente no Brasil contemporâneo: um governo com anseios totalitários manipulando uma população fragilizada por uma crise sanitária associada a um caos político-econômico que é constantemente induzida ao erro por um programa institucional de mentiras, fake News e ímpetos anticonstitucionais.
Tomando o diálogo em análise como referência, impõe-se a cada um daqueles que denunciam e enfrentam o ambiente obscurantista de nossa sociedade atual a necessidade de entender os limites da argumentação lógico-racional frente a uma ambiência societal marcada pelo caos informacional e por um projeto político-econômico de “terra arrasada”, que fomenta um crescimento exponencial da pobreza com fins de manipular massas populacionais vulnerabilizadas.
Como aponta Platão, o enfrentamento discursivo daqueles que defendem a instrumentalização social precisa ser realizado tendo a esfera pública como o último momento de todo um esforço educacional das coletividades. A inversão desta estratégia, ou seja, a eleição do debate público como campo prioritário de disputa pela adesão das multidões, como dramaticamente destaca o filósofo no Górgias, beneficia aqueles que operam apenas no campo da lisonja e da bajulação.
A ocupação dos espaços discursivos de nossa sociedade não pode ser um fim em si mesmo para aqueles que defendem justiça e bem-estar social, existem demagogos e robôs demais para tentarmos vencê-los post à post nas redes sociais. Nossa tarefa prioritária precisa ser outra, qual seja, formativa, com um forte apelo a um desenvolvimento ético num nível comunitário. E isto não acontece com debates que se submetem a lógica da lacração ou do cancelamento, o ritmo da razão é muito mais compassado, implica um comprometimento dos indivíduos muito maior do que um simples “like” ou de um “compartilhamento” semimecânico de um post ou um meme.
A aposta num tencionamento que pensa decidir tudo no debate público já demonstrou-se catastrófica, o caso Sócrates jamais poderá ser esquecido. Se o futuro da recente democracia brasileira está vinculado intrinsecamente ao contínuo juízo social que tem nas eleições seu momento mais emblemático, nossa tarefa é atuar preventivamente.
A crença de que a sociedade brasileira jamais chegaria a render-se à bravatas ou arroubos verborrágicos revelou-se absolutamente falsa. Quando a sociedade é infantilizada, as mais simplórias ameaças causam pavor – de chupetas anatomicamente bizarras à volta de modelos políticos que nunca existiram em terras brasileiras.
Contra o atual projeto político de idiotização da sociedade – com o sucateamento das universidades, desvalorização da educação infantil e instrumentalização da educação básica – faz-se necessária uma promoção educacional nacional, ainda que por outras vias que não às institucionais/governamentais.
Nosso embate fundamental é paidético, de um amplo espectro conteudal, que seja capaz de ultrapassar os limites educacionais formais e aproxime-se dos indivíduos em seu mundo sociocultural como um todo. Somente o enriquecimento reflexivo de nossa sociedade pode apontar-nos na direção de tempos outros, sem tragédias coletivas ou injustiças normalizadas.