O Mito do Individualismo Intelectual e a Prática Filosófica Atual
Bruno Coelho
Doutorando em Filosofia, UFBA
Felipe Rocha L. Santos
Pós-Doutorando em Filosofia, UFBA
Frank Wyllys Cabral Lira
Licenciando em Filosofia, UFAM
Juliomar Marques Silva
Doutor em Filosofia, UFBA
Lucas Bispo
Mestrando em Filosofia, UFBA
Matheus Oliva da Costa
Professor de Filosofia, UERR
Simone de Souza
Graduanda em Farmácia, UNIFESP
19/01/2022 • Coluna ANPOF
Recentemente, o blog Open for Debate, da Universidade de Cardiff, publicou um texto de Jonathan Matheson intitulado “O mito do Individualismo Intelectual”. Nesse texto, o autor argumenta que não existe algo como uma vida intelectual totalmente individual, não se ao menos considerarmos que essa é uma vida na qual as atividades intelectuais não podem ser realizadas por um indivíduo sem a necessidade de ajuda de outras pessoas. Isso porque nós vivemos em sociedade, numa relação de interdependência, o que não seria diferente na dimensão intelectual e significaria que a obtenção e transmissão de conhecimento depende, em diferentes medidas, de outras pessoas. Sendo assim, desde uma perspectiva individualista, se uma pessoa tivesse que, por exemplo, pensar por conta própria para decidir, de modo intelectualmente responsável, se ela deve ou não tomar uma vacina, ela precisaria, no mínimo, estudar diversas áreas e adquirir um certo conjunto de conhecimentos para alcançar um estado de entendimento que, como apontaria Matheson, só é possível através do esforço coletivo. Nesse caso, intelectualmente falando, o que seria mais apropriado a ser feito: tentar realizar esta longa pesquisa individualista antes de tomar uma decisão sobre se vacinar, o que parece ser inviável, ou, se valer das colaborações confiáveis das outras pessoas e decidir de maneira melhor informada?
A verdade é que a realidade é totalmente diferente do que o individualismo intelectual parece pressupor. Temos que confiar naquilo que nossos professores de biologia nos dizem, no que nos dizem os cientistas, os médicos, e assim por diante para então refletirmos e tomarmos uma melhor decisão. Dessa forma, essa reflexão e decisão será em grande medida dependente das capacidades cognitivas e do conhecimento produzido por outros. Logo, se alguém, em algum sentido, pensa por si mesmo, esse sentido deve envolver, inevitavelmente, a construção coletiva do conhecimento. Se é assim, aquelas pessoas que dizem pensar por si próprias, de modo totalmente individual, assumindo que por terem razões supostamente próprias, tem razões melhores que a dos outros, são pessoas que talvez possam ser avaliadas como demonstrando um vício intelectual¹ que, segundo Zagzebski, pode ser chamado de “egoísmo intelectual” (como bem lembrado pelo Eros de Carvalho em uma discussão pública sobre este texto do Matheson). Entre essas pessoas talvez estejam aquelas que acreditam que conquistaram ou escreveram algo totalmente por mérito próprio, ignorando toda a contribuição intelectual recebida da família, dos amigos, das instituições educacionais, da comunicação midiática, e de tantas outras fontes sociais de conhecimento.
Dito isso, podemos considerar, por um lado, que o egoísmo intelectual é um vício que se apresenta quando o sujeito acredita que ele pensou por si mesmo sem ajuda de outros, que suas razões são melhores que a dos outros e que, podemos acrescentar, não deve dar crédito aos outros por conta do que pensou. Por outro lado, o oposto desse tipo de comportamento é o que podemos chamar de virtude da humildade intelectual. Pessoas intelectualmente humildes reconhecem que suas razões e conclusões são dependentes das razões e conclusões de outras pessoas, que o trabalho coletivo em relação ao conhecimento pode ser ou é mais frutífero, como também reconhecem e atribuem crédito aos que o ajudaram a pensar. Dessa maneira, tendo em vista esta contraposição entre o egoísmo e a humildade intelectual, nós queremos refletir sobre a seguinte pergunta: uma prática acadêmica filosófica solitária é uma prática muito mais egoísta do que humilde, intelectualmente falando?
Para refletir sobre esta pergunta, podemos considerar um exemplo do próprio texto do Matheson. Ele cita que um artigo científico recente da área da física contou com mais de 5000 autores. Trata-se de um caso excepcional, mas também é excepcional encontrarmos artigos nessa área com apenas um autor. Isso porque muito da pesquisa científica não pode ser feita de modo individual: diversas pessoas trabalham em um laboratório, alguns são responsáveis por configurar e testar softwares, outros por revisar cálculos, outros por desenhar o experimento, outros por revisar a literatura e assim por diante. Nesses casos, cada pessoa envolvida no trabalho é considerada autora do trabalho final, pois houve um esforço coletivo para se chegar ao produto final da pesquisa, o artigo científico.
Já na filosofia, diferente de outras disciplinas, em geral temos artigos com um só autor. Claro que isso não significa que esses autores sejam, necessariamente, "egoístas intelectuais”. Afinal, um artigo bem escrito fará referência a outros autores e a argumentos construídos por outras pessoas (assim como esta referência é feita em artigos científicos da física, por exemplo). Contudo, assim como os artigos científicos escritos por mais de uma pessoa, mesmo a produção filosófica assinada por um só autor envolve indireta e diretamente outras pessoas - discussões em congressos, em grupos de pesquisa ou em sala de aula. Em geral, quando a contribuição de outros é relevante nestes casos, acrescenta-se uma nota de rodapé agradecendo a contribuição feita pelos nossos colegas. No entanto, podemos nos questionar se esta forma de atribuir crédito é justa ou, por exemplo, se deveríamos considerar que certas contribuições são dignas de coautoria. Ou ainda, podemos perguntar em que medida a filosofia se aproxima ou se distingue de outras disciplinas reconhecidamente mais colaborativas e se não seria mais interessante tomarmos mais iniciativas coletivas de trabalho.
Talvez possamos ser mais específicos: qual critério devemos utilizar para considerar uma certa contribuição uma coautoria? Tratar-se-á, por exemplo, da contribuição que envolveu um esforço e um resultado suficiente para que a consideremos fundamental para o trabalho? Na filosofia, diferentemente de outras áreas científicas, o esforço em geral é ou (1) o raciocínio intelectual ao desenvolver um argumento, ou (2) é um esforço que envolve revisão de literatura e a escrita propriamente dita. Parece que o que é mais comum para considerar uma contribuição uma coautoria é o esforço do tipo (2). O que está em jogo na tensão entre (1) e (2) pode ser o seguinte: se um filósofo está escrevendo um artigo para publicar, e em uma discussão em sala de aula um de seus alunos percebe que o argumento tem uma falha e sugere uma alteração que deixa o argumento mais forte, essa contribuição que envolve um esforço cognitivo fundamental para o argumento central do artigo, como sugere (1), não deveria ser uma contribuição que merece a coautoria? Não seria, portanto, o equivalente nas ciências daquela contribuição que envolve a revisão de um cálculo em um software que garante que o resultado obtido é o esperado? Ou seria um esforço somente digno de nota de rodapé, para que o crédito do artigo publicado seja todo do seu autor, somente porque o esforço que ele realizou sozinho foi do tipo (2)? Além disso, não seria melhor que o trabalho filosófico se aproximasse das práticas científicas no sentido das iniciativas colaborativas e de cocriação?
Este texto não tem como objetivo oferecer respostas precisas às perguntas aqui feitas e sim, a partir dessas observações, simplesmente promover uma reflexão sobre as razões da prática filosófica, em termos de ser mais egoísta e não colaborativa, e também sobre a possibilidade de adoção de mais humildade intelectual e reconhecimento de coautoria na prática filosófica acadêmica. Nesse sentido, além de incentivarmos as iniciativas de cocriação, entendemos que talvez colaborações nos argumentos, nas fundamentações ou nas conclusões, sejam esforços intelectuais suficientes para serem considerados coautoria - o que pode ser feito de forma dialogal, pautada pela virtude da humildade intelectual².
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¹ Um vício intelectual é uma atitude, modo de pensar ou traço de caráter que limita ou impede a obtenção de conhecimento. Por essa mesma perspectiva, e em oposição aos vícios, existem as virtudes intelectuais. Essas últimas, ao contrário dos vícios, podem nos facilitar a obtenção de conhecimento.
² Este texto é o resultado de uma discussão feita pelos autores em uma rede social, onde todos contribuíram com questões, ideias, argumentos e a própria escrita do texto. O que, para nós, reflete uma das formas de como a filosofia pode ser feita: um modo coletivo e dialogal de filosofar.