O paradoxo de Harrington: notas sobre engenharia epistêmica

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

29/09/2022 • Coluna ANPOF

Como parte do seu programa global de engenharia intelectual, a controversa Central Intelligence Agency lançou, poucos anos antes do golpe de 1964, uma revista que já deveria ter chamado há muito tempo a atenção da comunidade brasileira de filosofia: a Cadernos Brasileiros, uma revista de alto padrão que publicava autores nacionais e estrangeiros, e que era direcionada essencialmente à elite intelectual do país.

O que vou fazer aqui nessa minha pequena contribuição à Coluna Anpof é defender que nós, que pertencemos à comunidade brasileira de filosofia, nós, que querendo ou não somos parte da periferia do mundo, faríamos bem em investigar essa curiosa empreitada de manipulação epistêmica levada a cabo não só no Brasil, mas em escala global. 

Uma coisa é estudar, como fez Foucault, arquivos europeus dos séculos XVIII e XIX para revelar como a emergência de novos saberes implicou simultaneamente na emergência de novos sujeitos. Outra coisa muito diferente é estudar esforços deliberados de engenharia do saber, isto é, esforços para intervir sobre a malha discursiva de uma população determinada – a partir de seus pontos de máxima irradiação – com fins políticos e estratégicos específicos. 

É evidente que as vicissitudes que marcaram a formação das prisões e dos hospícios europeus nos dizem respeito, até porque, durante os séculos XIX e XX, a elite intelectual brasileira se definia nos moldes da França. No entanto, se fontes históricas primárias dos séculos XVIII e XIX, já amplamente exploradas, ainda têm coisas a dizer sobre nosso tempo, é possível afirmar com bastante segurança que fontes históricas primárias de apenas duas ou três gerações atrás (que continuam a ser inexplicavelmente ignoradas) também têm coisas a dizer, possivelmente até coisas mais importantes. 

A Cadernos Brasileiros faz parte de uma categoria muito especial de arquivo, uma vez que, por causa da cisão fundamental entre sua máscara e sua face, ela deve ser lida de soslaio, com cautela redobrada, ou seja, não por meio de uma arqueologia ou uma genealogia do saber, o que levaria a resultados inevitavelmente ingênuos, mas por meio de uma espécie de contraleitura analítica ou de uma engenharia reversa do saber. 

A questão fundamental não é investigar um lento processo histórico de formação discursiva relativamente autônomo, muito menos saber se cada uma das proposições enunciadas na Cadernos Brasileiros – e na enorme rede internacional de publicações secretamente financiadas pela CIA – fazem justiça à teoria da verdade como correspondência. A questão fundamental é analisar uma intervenção cuidadosamente planejada e habilmente executada (os agentes da CIA eram recrutados das melhores universidades americanas) sobre a mentalidade brasileira. A questão é estudar a anatomia de uma guerra travada por meio de palavras. 

Um interessante artigo publicado na Cadernos Brasileiros fornece uma excelente amostra do que a Central Intelligence Agency pretendia com seu programa de engenharia intelectual em escala global. Escrito por Michael Harrington e intitulado “A Potência Americana no nosso Século”, o artigo apareceu originalmente na italiana Tempo Presente, também secretamente financiada pela CIA, sendo depois traduzido para a Cadernos Brasileiros

Harrington começa com um tom surpreendentemente de esquerda: lamentando os abismos socioeconômicos entre os países ricos e pobres, atribuindo (corretamente) as origens das injustiças globais às grandes colonizações do período moderno (que permitiram a industrialização das potências ocidentais) e prevendo o aumento progressivo da desigualdade econômica sob os auspícios do capitalismo. “É tão frequente afirmar que os países ricos estão se tornando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres que isto passou a ser um lugar-comum”, explica Harrington na sua abertura (1968, p.61). “Quando o capitalismo conquistou nosso planeta, destruiu ou corrompeu as civilizações indígenas logo encontradas. (...) Os conquistadores impuseram tributos diretos aos vencidos e, muitas vezes, a escravidão” (1968, p.62). No ano do AI-5, até mesmo Marx é citado (1968, p.62). 

O sinal emitido é de que as análises apresentadas em “A Potência Americana no nosso Século” estão livres de obtusidade e fanatismo. Ela é balanceada. Ela é equilibrada. Ela acomoda diferentes pontos de vista. Ela está aberta ao diálogo. Harrington não adere à estreita concepção que entende as desigualdades como benéficas e inevitáveis. E assim ele conquista, logo de saída, a simpatia de leitores e leitoras de esquerda. E eram sobretudo os leitores e as leitoras de esquerda que a CIA tinha em mira. 

Havia, sim, o risco de chocar os leitores e as leitoras de direita, que podiam acusar impacientemente a Cadernos Brasileiros de propaganda comunista, como se fazia na época da ditadura e como se voltou a fazer no Brasil quando os americanos colocaram Bolsonaro no poder. Mas a crítica ao colonialismo e à desigualdade atendia a um objetivo mais importante: desarmar as defesas dos leitores e das leitoras de esquerda.

A direita e o governo militar, na verdade, não tinham com o que se preocupar. A guinada para a direita não demora a acontecer: “Foram sistematicamente negadas as vantagens do novo industrialismo à Ásia, à África e à América Latina: seus povos foram considerados, por definição, os trabalhadores do ocidente. (...) Paradoxalmente, as nações recém-independentes sofreram porque os países mais progressistas tinham agora menos interesse em servir-se delas” (1968, p.62). 

Isto é, o fim da exploração teve não um efeito positivo e sim um efeito negativo sobre os países pobres. A afirmação é mesmo paradoxal. Depois de denúncias perfeitamente alinhadas ao pensamento de esquerda – depois de anunciar em grandes letras seu repúdio à colonização e à exploração –, Harrington passa a defender que a melhor opção para os países pobres é se resignarem ao seu papel histórico de exportadores de matéria-prima. Por não terem condições de competir em pé de igualdade com países já industrializados, eles não deveriam, ao contrário do que queriam os comunistas, investir no processo de industrialização.

A seguinte passagem resume a posição de Harrington: “Obviamente, porém, sociedades ainda em formação não podem competir com as desenvolvidas e gigantescas indústrias da Europa e da América: seria um absurdo, um esbanjamento, investir recursos em um setor de tecnologia moderna que, depois de tudo isso, não seria nada mais do que uma cópia de fábricas ocidentais, e ainda por cima uma cópia ruim, capaz de produzir somente em custos demais e incompatíveis com os da concorrência” (1968, pp.63-4). Assim, continuar exportando matérias-primas baratas e importando produtos manufaturados nas superpotências é “única coisa racional que resta fazer” aos países pobres (1968, p.64). As semelhanças com a política adotada no Brasil após a derrubada do Partido dos Trabalhadores são notórias. Depois de um breve respiro, voltamos a seguir as diretrizes de Harrington.

A argumentação dele é costurada com muita cautela e habilidade – o que exige, claro, uma contraleitura igualmente cautelosa e habilidosa. A transição da crítica ao colonialismo passado ao louvor do colonialismo presente é lenta e gradual. Harrington se esforça para tocar as notas certas. Ele não quer alarmar seus leitores e suas leitoras. A CIA tinha plena consciência de que não se deve ir com muita sede ao pote. Não se muda a mentalidade de uma população da noite para o dia. 

Vale observar que se Harrington tivesse começado afirmando que “seria um absurdo [para os países pobres] investir recursos em um setor de tecnologia moderna” para somente depois afirmar que “os países ricos estão se tornando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres” e que “o capitalismo (...) destruiu ou corrompeu as civilizações indígenas”, ele teria desarmado a direita para infiltrar nela elementos de esquerda, não desarmado a esquerda para infiltrar nela elementos de direita. Ele teria atraído capitalistas para o campo comunista, não comunistas para o campo capitalista. A ordem dos fatores muda completamente o produto. As habilidades retóricas de Harrington estavam em dia.

Seria possível escrever uma dissertação de mestrado inteira, uma tese de doutorado inteira, um livro de filosofia inteiro sobre o artigo de Harrington, e o mesmo pode ser dito sobre as inúmeras preciosidades reunidas na Cadernos Brasileiros, bem como sobre a avalanche de revistas, livros, filmes e programas de rádio secretamente financiados pela CIA. Não precisamos nos restringir a ser comentadores e comentadoras. Temos potencial para inovar e para fazê-lo não levianamente e sim discutindo um tópico importante.

A academia – apesar de sua aparante autonomia intelectual – não ficou imune à obra de engenharia planetária liderada por Washington. A coluna vertebral da filosofia foi profundamente transformada. A ascensão da filosofia analítica e do pós-estruturalismo, que hoje dominam a cena filosófica internacional, aconteceu durante a Guerra Fria (para minha vergonha, fiz meu mestrado sobre Wittgenstein). Foi nessa época que a crítica do grande poder perdeu popularidade, sendo substituída pela crítica do pequeno poder. A transformação deveria nos fazer franzir o cenho.

A história da filosofia do século XX ainda precisa ser adequadamente contada. E não há como contá-la adequadamente desconsiderando sua relação com o grande poder. Se o século XIX foi o século da biopolítica, o século XX foi o da engenharia. Que tal fazermos uma engenharia reversa do saber? Ou vamos continuar a nos reduzir – e a reduzir as novas gerações de estudantes – a peças da engrenagem? 


Referências

HARRINGTON, Michael. “A Potência Americana no nosso Século”. In: Cadernos Brasileiros, Vol. 10, No. 4 (48), Julho/Agosto, 1968, pp.61-79.

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