O problema ético de "matar um ladrão" e a política brasileira
Matheus Oliva da Costa
Pós-doutorando em Filosofia (USP)
16/05/2021 • Coluna ANPOF
Matar ladrões é diferente de matar pessoas? Essa é uma pergunta que gerou um debate ético na China antiga. De um lado, os moístas defendiam que se tratava de algo distinto. Do outro lado, o confuciano filósofo Xun (Xunzi) argumentou que isso era uma falácia. No fundo, essa questão é sobre se existem condições em que a pena de morte é aceitável. Neste breve texto temos o objetivo de refletir sobre como esse debate continua a ter relevância para pensar problemas éticos do atual campo político brasileiro.
Contextualizando: os últimos séculos da antiguidade chinesa foram bastante tumultuados socialmente, politicamente e militarmente. Trata-se dos períodos entre os séculos VIII e II Antes da Era Comum (AEC), chamados na historiografia chinesa de “Primaveras e Outonos” e “Estados Combatentes”. São caracterizados pela guerra pelo poder entre os estados vassalos da dinastia Zhou (1046-256 AEC). Uma consequência desse contexto é que se formaram os primeiros grandes filósofos dessa cultura, sendo que vários deles criaram movimentos, o que foi chamado posteriormente de as “cem escolas de pensamento” [i].
Destacamos aqui duas dessas filosofias: Mozi e os moístas, e Confúcio e os confucianos (Escola dos Eruditos). Ambas buscaram fornecer respostas aos problemas próprios do seu tempo. Aqui fazemos o recorte do seguinte problema político-ético: a pena de morte é algo aceitável? Se sim, em que condições a pena de morte seria necessária? Vamos entender suas respostas.
Entre as ideais dos moístas, seguidores do filósofo Mo Di (470-391 AEC), apontamos a proposta de imparcialidade ética, Jian Ai: amor ou cuidado indiferenciado. Essa é a atitude de tratar a todos com o mesmo cuidado, de forma imparcial, que viam como a maneira mais eficaz de resolver os seus problemas sociais. Defendiam que, se todos se tratassem de forma mais igualitária isso traria mais benefícios a cada pessoa – um dos primeiros argumentos consequencialistas da história[ii].
Contudo, essa proposta universalista enfrenta um grave problema: quando alguém comete crimes e é julgado com pena de morte, isso é aceitável? Por um lado, a resposta é simples, pois se todos devem ser igualmente cuidados, também podem ser igualmente condenados. Por outro lado, soava um tanto estranho defender o amor imparcial, e, ao mesmo tempo, aceitar que pessoas podem ser executadas. Buscando defender essa contradição como uma ideia justificada, argumentaram que “executar ladrões não é executar pessoas”[iii]. Seu argumento usa de classificações lógicas: ser uma pessoa (tipo geral) é diferente de ser ladrão (tipo específico), logo, matar uma pessoa que rouba seria diferente de matar pessoas de forma geral – por exemplo, inocentes.
Algo que eu não disse antes é que os moístas formularam sua filosofia em grande medida contra a Escola dos Eruditos ou confucionismo. Confúcio (551-479 AEC) foi defensor dos valores morais da antiguidade e do que entendia ser os sábios virtuosos desse período, especialmente os fundadores da dinastia Zhou. Para esses eruditos: (1) devemos cultivar a virtude da “filialidade” (Xiao), começando com os próprios pais, que é a primeira forma de cultivar virtudes que nos tornam humanos; depois, (2) vamos expandindo gradualmente o mesmo cuidado/amor, até abarcar toda sociedade, o soberano, e até todo o mundo, tal como os sábios[iv]. Esse modelo ético gradual pode ser chamado de “cuidado diferenciado” (Aiyou chadeng), ainda que mire algo maior: o cuidado para com todos, sem diferenças.
De modo geral, os confucianos são contra a pena de morte, especialmente por parte do Estado[v]. Acreditam muito mais no poder na educação formal, do exemplo moral das lideranças e até de transformação ética das pessoas. No entanto, haveria algumas exceções: em resumo, pessoas cujas ações fazem – ou tem o potencial de causar – tumultos públicos impactantes, como chacinas, genocídios ou corrupções governamentais[vi].
Na obra homônima do confuciano Xunzi, filósofo Xun (310-211 AEC), foi registrado um episódio em que foi decretado uma pena de morte: trata-se do “caso Shao Zhengmao”[vii]. Nesse caso, Confúcio, na sua primeira semana como “ministro da justiça” do estado de Lu, depois de mandar executar o muito popular Shao, foi questionado pelos discípulos. Respondeu que quando há pessoas excepcionalmente destrutivas para toda sociedade, como Shao, elas deveriam ser punidas. Caso contrário, criariam grupos de seguidores destrutivos, difundiriam discursos corruptíveis e seriam contra o que é certo.
Seguindo a tendência da sua escola, o filósofo Xun também era geralmente contra a pena de morte, ainda que houvesse exceções para casos extraordinários. Curiosamente, no “caso Shao Zhengmao”, ele cita que Confúcio deixa claro que o simples “roubar” ou “furtar” não é uma daquelas condições mais destrutivas. Sabendo disso, em sua postura crítica à todas as outras escolas filosóficas, o filósofo Xun argumentou[viii] contra o que chamou de uso confusos dos nomes que levam a tumultuar os nomes, falácias da linguagem, cujo um exemplo seria justamente a frase moísta de que “executar ladrões não é executar pessoas”.
Segundo sua teoria da nomeação correta (Zheng Ming), se alguém verificar as “ações derivadas” dessas falácias da linguagem, “vai observar o que acontece quando elas são executadas”. Qual seria a consequência dessas falácias para o filósofo Xun? Elas causariam tumultos na comunicação humana, gerando, com o tempo, conflitos sociais. Por isso tais falácias devem ser rejeitadas, especialmente pelos governantes, já que estes devem prezar pelo bem público, através da educação, do suprimento das pessoas e da harmonia social. Ele está acusando os moístas de usar uma falácia – o que, na teoria dele, é uma linguagem enganadora que tem um potencial social destrutivo. No caso da frase sobre matar ladrões, inferimos uma desumanização seguida de desequilibrada penalização de pessoas que cometem pequenos delitos por necessidade, quando a melhor solução seria fornecer educação e formas dessas pessoas se manterem sem necessidade de roubar.
Após refletir sobre esse debate, o caso brasileiro me vem à mente como sendo estruturalmente parecido, ainda que com outro conteúdo, outra roupagem. O atual conservadorismo que dominou essa sociedade apresenta uma falácia da linguagem muito próxima da dos antigos moístas. Por um lado, os conservadores cristãos bolsonaristas, baseados na Bíblia, afirmam que é necessário “amar o próximo”, por outro lado, defendem que “bandido bom é bandido morto”. Foi utilizando desse discurso contraditório que a atual presidência ganhou espaço e fez o que Confúcio tanto temia: criaram grupos de seguidores destrutivos, difundiram discursos corruptíveis e são contra o que é “certo”, pelo menos do ponto de vista atual dos Direitos Humanos.
Assim como os moístas, parte considerável dos eleitores do atual presidente defendem que “executar ladrões não é executar pessoas”, mas numa linguagem própria. Eles diferenciam, numa clara falácia da linguagem nos termos do filósofo Xun, o “cidadão de bem” do “bandido”[ix], de forma que os primeiros são vistos como humanos com direitos, enquanto os últimos são desumanizados para legitimar sua morte. No entanto, em mais de dois anos de governo, assistimos o impacto negativo desse discurso, devido ao aumento da violência em todo país, sobretudo contra os mais pobres, ao passo que é desarticulado o combate à corrupção política e aos crimes ambientais.
As falácias da linguagem do bolsonarismo, além de comunicação equivocada, são discursos enganosos que geram tumultos. Enquanto tal falácia persistir, teremos caos social. Para mudar isso, por um lado, é preciso punir os “Shao” do nosso contexto. Por outro lado, para quem desejar mudar esse quadro é preciso corrigir a linguagem, encontrar novos termos baseados em boas experiências já testadas e aplicadas[x], ajudando a nossa sociedade a encontrar um caminho mais coeso e harmônico. Algumas sugestões: unificar um discurso pró investimento público em educação (cf. Finlândia e Coréia), e defender uma política do “bem viver” que valorize tradições locais (cf. Bolívia e Nicarágua).
[i] Cf. COSTA, Matheus O. Confucionismo: uma abordagem intercultural. Curitiba: Intersaberes, 2021.
[ii] Cf. VAN NORDEN, Bryan W. Introdução à Filosofia Chinesa Clássica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
[iii] Cf. MOZI. Mozi, 11, Xiao qu, 5. In: STURGEON, D. Chinese Text Project. 2006. Disponível em <https://ctext.org/mozi/minor-illustrations>. Acess. 08/05/2021.
[iv] Cf. MENGZI. Mengzi – Teng Wen Gong I, 5. In: STURGEON, D. Chinese Text Project. 2006. Disponível em <https://ctext.org/mengzi>. Acess. 08/05/2021; Cf. VAN NORDEN, 2018, p. 45-46.
[v][v] Cf. CONFÚCIO. Os Analectos. São Paulo: Editora UNESP, 2012, p. 375 (cap. 12.16); MENGZI, Gaozi II, 28.
[vi] Cf. CONFÚCIO, 2012, p. 340 (cap. 11.16); MENGZI, Li Lou I, 14.
[vii] Cf. cap. 28, 2 do: XUNZI. Xunzi: The complete text. Princeton: Princeton University Press, 2014.
[viii] Cf. XUNZI, 2014, cap. 22.
[ix] Cf. KALIL, Isabela Oliveira et al. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. São Paulo: FESPSP, 2018, p. 9. Disponível em <https://www.fespsp.org.br/upload/usersfiles/2018/Relat%C3%B3rio%20para%20Site%20FESPSP.pdf>. Acess. 08/05/2021.
[x] Cf. XUNZI, 2014, cap. 22.