O que é real?
Eduardo Novaes
Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia
07/11/2023 • Coluna ANPOF
à Professora Nancy Mangabeira Unger
Imaginemos a situação em que o pensamento é totalmente irrefletido, ou seja, que em uma comunidade é extinta a capacidade de ter reflexão. Uma sociedade inteira construída nas ruínas de uma dialética da ação razoável entre os seus agentes e da condição epistêmica do vício pelo irracional, cuja síntese é a normalidade da surdez interior aos pensamentos. Todos vivem sob a condição normativa de terem representações mentais muito embora não encontrem um meio de fixar a distinção clássica entre ideias e juízo. Nesse sentido, nessa sociedade de autômatos, haveria 'pensamento' ou somente 'ação e linguagem'? Decerto, nos termos dados, temos ‘representação mental’, na extensão semântica básica de uma 'imagem anímica', mas a ligação entre pensamento, palavra e mundo afigura-se impossível. Pois ‘ter pensamento’, por definição, significa haver a existência de um elo entre a representação interna e a representação linguística; assim o é também com a representação externa. Essa instituição não teria, portanto, a ideia de uma ‘realidade’: viveríamos a ver vozes, ecos de um espírito sem letras, que, no limite da minha exposição, irei atribuir à realidade filosófica geral.
Experimentos de pensamento como esse permitem situar o uso comum das faculdades e elucidar os usos da linguagem. Assim, eles nos cedem um conjunto de ferramentas para descrição dos mecanismos dos conceitos primários que os filósofos se apoiam em suas descrições. À maneira de Aristóteles, o real pode se dizer de muitos modos. Ao longo da tradição, listo quatro: é real o impulso produzido por um afeto que está em jogo associativo através de um dinâmica particular; é real o que é condição de fixação de uma realidade empírica; é real as condições dadas pela forma de subsistência de um objeto em que é impossível reduzi-la a uma condição ontológica particular sem que se confunda com uma intuição originária que, de resto, é um gesto da imaginação com o pensamento sem relação profunda com a realidade; e por fim julgo que a mais cética das condições de organização do fenômeno empírico é dizer que o real nada mais é que algo invisível, inodoro e insípido, quando sua articulação põe em suspenso não as condições transcendentais do mundo mas sim, ao reconduzir o visível à esfera da realidade, anula as condições de representação do real como essência do significado de um conceito.
É através da derrocada do barroco que se iniciou o antropocentrismo. Digo isso pois a melhor maneira de avaliar a filosofia de um tempo é através das artes que a sociedade produz. Se a nossa breve história de uma sociedade autômata vive a condição inarticulada da ação inautência, então a imagem que, com o uso articulado que a noção de 'inverossimilhança' tem as noções de completude sistêmica e incompletude teleológica, então, por exemplo, os humildes nas pinturas de Daumier, verdadeiros trabalhadores..., vivem o sonho do surrealismo: não há de ver, no onirismo, representação por semelhança, mas somente por identidade: do desejo com ele mesmo, essa condição visceral advinda da fome: o objeto enamorado torna-se Um. Essa decerto não é uma interpretação comum. Da própria psicanálise, que conheço pouco, passando pelo cinema, que conheço um pouco, os diversos saberes creem, em primeiro lugar, que a representação aparece como um sintoma, e, em segundo lugar, que a representação vinculada entre inconsciente e realidade cede forma ao real circunstanciado.
Gostaria ainda, antes de concluir, expor uma situação paradigmática: lá no início da Metafísica, quando Aristóteles está descrevendo o divórcio de gênese entre o conhecimento por causas daquele pela memória e apresenta como os sentidos afetam os animais, que memorizam os dados sensíveis através de um gesto irrefletido, o saber da filosofia é construído mediante o mecanismo do 'discernimento congruente e ascético'. O animal, essa categoria filosófica..., não discerne, como nós, o joio do trigo - ao menos eles, os animais que seremos, não tem conhecimento causal da construção da experiência: eles simplesmente veem sensações. Mas se a percepção é, ao logo da história da filosofia, o fruto do órgão do sentido privilegiado na maioria dos sistemas, por redução ao absurdo não vemos aquilo que categorizamos ver. Eis assim a exposição de um dogma que perpassa a história da filosofia: aquilo que é real é condição impossível, de um ponto de vista ontológico, de predicação. Daí, de duas, uma: ou aquilo que é critério de organização sensível não tem a mesma multiplicidade lógica do julgamento, não sendo portanto o seu critério e, ao não ser o seu critério, está em suspenso qualquer formulação teórica sobre fatos do mundo, ou então aquilo que é real envolve o objeto em uma carga de afetos cuja afecção faz coincidir dados aos sentidos com dados produzidos pelos sentidos: toda a filosofia não passa de um psicologismo intransitivo conjugado em um verbo defectivo?
Agora concluindo, poderíamos contra-argumentar os aporéticos que "Real é apenas o que advém aos órgãos dos sentidos". A resposta cética, então, ao problema do mundo exterior ou à representação onírica nas artes em geral passa a ser formulado nos seguintes termos: "Se tudo aquilo que há há, então 'real' é o que há independente do que seja o caso e, portanto, é somente uma apresentação periférica de um combinatória, matemática quiçá, uma Plástica por semelhança, que, por corresponder com a realidade em um nível de fixação, é simplesmente fruto da imaginação filosófica, não sendo pois objeto de predicação quando decaído ao nível das coisas, no sentido comum da realidade, e portanto aquilo que existe há e somente há: eis uma predicação impossível". De resto, contra o cético, tudo parece convidar a intuição do mundo como totalidade. Para pontuar uma conclusão, porém, real parece ser tudo aquilo que nos falta e por isso mesmo nunca colocamos em questão o estatuto de condição do nosso fazer, do nosso trabalho em filosofia.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.