O que Hannah Arendt disse sobre o que se passa em Israel hoje?

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

10/06/2021 • Coluna ANPOF

A terra que passaria a existir seria algo bem diferente do sonho da comunidade judaica mundial, sionista e não sionista. Os judeus “vitoriosos” viveriam cercados por uma população árabe totalmente hostil, isolados dentro de fronteiras constantemente ameaçadas, absorvidos pela autodefesa física em um nível que afogaria todos os outros interesses e atividades. […]  o pensamento político giraria em torno da estratégia militar; o desenvolvimento econômico seria determinado exclusivamente pelas necessidades da guerra”. (Hannah Arendt no artigo Para Salvar a Pátria Judaica, escrito em 1948).

A pensadora alemã e judia que se tornou mundialmente conhecida por trabalhos como Origens do Totalitarismo, A Condição Humana e Eichmann em Jerusalém também escreveu, por muitos anos, sobre a política judaica, ocupando o lugar de oposição leal ao sionismo. Entre os anos 1930 e 1940, período que compreende sua apatridia, muito antes de se tornar a reconhecida acadêmica nos Estados Unidos, Hannah Arendt escreveu intensamente sobre a temática judaica, engajando-se na defesa pela paz na Palestina. O desfecho da Segunda Guerra Mundial com a formação do Estado de Israel, orientada por decisões completamente míopes politicamente, fariam a autora judia desistir de emitir opiniões publicamente sobre o tema nos anos seguintes (até Eichmann ir a julgamento). Se Arendt estivesse viva testemunhando o que se passa hoje em Israel, diria um sonoro: eu avisei. Mas não foi ouvida.

Neste texto, recupero algumas de suas críticas centrais à formação do Estado de Israel que apresentam a precisão e a atualidade de seus argumentos. Arendt alegou em diferentes momentos, por muitas vezes, que era uma grande estupidez formar um Estado judeu ignorando a presença dos povos árabes, defendendo, por outro lado, a formação de um sistema federado, onde não houvesse maioria ou minoria. Em 1944, Arendt já reconhecia, no texto “Sionismo Reconsiderado”, que os conflitos trágicos, daquela época, se tornariam conflitos insolúveis, caso esta presença não fosse considerada na organização política deste novo Estado judeu. É a frase que parece ecoar em 2021 quando testemunhamos, quase setenta anos depois, mais um bombardeio israelense que deixou 250 palestinos mortos, sendo 129 civis, 66 crianças e 38 mulheres. Além de 13 pessoas mortas também em Israel, incluindo dois menores de idade.

Em artigo escrito em março de 1945 ao Jornal Aufbau, Arendt indicava: um lar que meu vizinho não reconheça e respeite não é um lar, mas uma ilusão. Por isso, ela considerava que o programa do povo judeu, incapaz de aceitar a realidade da presença dos povos árabes, seria um castelo no ar. Ilusionistas, utópicos e apolíticos: são as palavras que Arendt utilizava para qualificar os políticos judaicos da Palestina que conduziam as negociações para a formação de Israel. Possivelmente, ela tornaria a repetir esses adjetivos para qualificar as lideranças sionistas que insistem, hoje, em estar na ponta do canhão o futuro de Israel.

A autora que, anos mais tarde, criticaria em Origens do Totalitarismo (1951) a incapacidade de Estados-nação garantirem direitos humanos aos não nacionais, já indicava em textos de 1940 seu ceticismo em relação a essa forma de organização política. Para Arendt, era uma grande ilusão acreditar que não existiriam grandes conflitos ao dividir um território tão pequeno. A conhecida defensora do sistema de conselhos em Sobre a Revolução (1963) defendeu, em diferentes momentos na década de 1940, essa forma de organização política na Palestina, para que judeus e árabes pudessem conviver no mesmo território.

Hannah Arendt acreditava ser um grande erro que o Sionismo creditasse à formação do Estado judeu a solução para todos os problemas do povo judeu ou, que com isso, o antissemitismo estivesse aniquilado, de uma vez por todas. Para ela, era uma grande ilusão a proposta de Theodor Herzl, fundador do Sionismo, de desenvolver um “organismo isolado”. Sua alerta era: onde quer que os judeus estejam, eles deverão combater o antissemitismo ou serão exterminados em todos os lugares. Fugir para a Palestina não significava fugir para a Lua, e por isso seria necessário darem-se conta de que estavam cercados por povos árabes e se esforçarem para chegar em acordos com seus vizinhos. A política, defendia Arendt, não é o espaço do amor, mas do respeito, do diálogo e da pactuação. Contudo, as lideranças judaicas não pensaram que a Palestina fosse um território onde seria necessário fazer acordos com outros povos, mas um lugar ideal, “onde os ideais poderiam ser realizados e onde se poderia encontrar uma solução pessoal para os conflitos políticos e sociais” (Idem, p. 608).

Arendt recusava fortemente a ideia de um Estado ou império soberano cujo povo majoritário fosse idêntico ao Estado e, por isso, rejeitava a ideia de formar um Estado-nação tal qual proposto pela commonwealth judaica. Para ela, a única saída realista seria uma política de alianças entre os povos mediterrâneos. O pensamento de Arendt estava informado pela recente e catastrófica experiência de resolver conflitos nacionais criando Estados soberanos, legados pela Primeira Guerra Mundial.

O fenômeno de massas apátridas do início do século XX era suficiente, aos seus olhos, para indicar a impossibilidade de garantir os direitos das minorias dentro das estruturas dos Estados compostas por diversas nacionalidades. Essa experiência “sofreu uma derrota tão espetacular em tempos recentes que se poderia esperar que ninguém teria a pretensão de pensar em seguir esse caminho novamente” (Idem, p. 381). São estas experiências que trilham o caminho para a ideia que seria desenvolvida mais adiante, em 1951, sobre os direitos humanos como o direito a ter direitos: ou significam participar politicamente da comunidade na qual um ser humano está inserido, ou não passariam de um slogan.

É inútil procurar no pensamento de Hannah Arendt por modelos de organização política. Daí, é recorrente encontrarmos críticas que indicam que suas reflexões são exitosas em promover problematizações, mas pouco eficientes em apontar saídas. Este não é o caso desses textos críticos sobre a formação do Estado judeu. Neles, encontramos uma proposta de arranjos federativos na Palestina e vemos emergir sua defesa inconteste pela participação política alargada, que estará presente em suas obras mais maduras como um princípio. Nesta forma de organização política, árabes e judeus gozariam de “direitos iguais como membros de um sistema mais amplo que garante os interesses nacionais de cada um” (Idem, p 383.). Estes arranjos seriam a solução para resolver conflitos nacionais porque o insolúvel problema da maioria-minoria deixaria de existir.

Arendt se juntou à Judas Magnes, fundador do partido Ihud, para defender esse sistema federativo na Palestina – seu último movimento político antes de desistir, de vez, da política judaica. Suas vozes ecoavam sem que ninguém as ouvisse. Mesmo quando a catástrofe já havia sido realizada, ou seja, a divisão da Palestina estava concretizada à revelia dos árabes, Arendt insistiu em um “autogoverno local e conselhos municipais e rurais mistos de judeus e árabes” (Idem, p. 670). Ela dizia, em 1948, que ainda não era tarde demais. A questão que se coloca hoje é: é tarde demais para pensar em formas de participação política em que judeus e árabes convivam em vizinhança, sem muros e mísseis, e se reúnam para deliberar sobre os problemas que os tangenciam?

Ainda há um outro elemento que caracterizou a história da formação do Estado judeu que Arendt identificou ser uma grande fragilidade: a subserviência às grandes potências externas. Arendt faz essa crítica referindo-se, em um primeiro contexto, à Grã-Bretanha, e em um momento posterior à Segunda Guerra Mundial, aos Estados Unidos. Ela comenta como, desde a Declaração de Balfour, crescia a hostilidade árabe, ao passo que a dependência da proteção britânica tornava-se “uma necessidade tão desesperada que poderia ser chamada um caso curioso de rendimento incondicional voluntário” (Idem, p. 625).

Para ela, as lideranças perderam tempo negociando com governos ao invés de negociar com povos. Tratava-se de uma grande ignorância o fato das lideranças políticas criarem uma relação de dependência do seu nacionalismo com uma nação estrangeira ao invés de se dedicarem a negociar com os países vizinhos, porque não importava quão poderosas essas forças fossem naquele momento “certamente não têm poder suficiente para antagonizar os árabes, um dos povos mais numerosos da bacia mediterrânea” (Idem, p. 594). Estados Unidos e Inglaterra não tinham poder para promover essa antagonização naquela época, tampouco têm hoje. A responsabilidade – e o desafio – de negociar com os povos árabes ainda repousa no colo judeu.

Por fim, Arendt alertou para o grande perigo da falta de oposição dentro do movimento sionista. Ela indicava, em 1944, que a unanimidade de opiniões era uma fachada, porque o sucesso da “commonwealth judaica livre e democrática” era a supressão de toda a discussão livre e democrática, sufocando a oposição que ainda existia no movimento. A obstrução da construção da opinião política, pautada na diferença de perspectiva, conduziria, diz Arendt, à transformação “de um povo em mais ou menos fanatizados grupos de “crentes”. (Idem, p. 432).

A ausência de oposição se consolidou depois do estabelecimento do Estado de Israel. Arendt identificou uma unanimidade entre os judeus palestinos e americanos: subitamente pararam de acreditar na sobrevivência como um bem definitivo em si próprio e passaram a acreditar que “cair em combate” é um método sensato de fazer política” (Idem, p. 658). Em comum, estes judeus partilhavam da “convicção cínica” de que todos os gentios são antissemitas e de que tudo e todos eram contra os judeus. Essa incapacidade de identificar amigos e inimigos se apresentaria como uma terrível estratégia política.

Foi nesta experiência que Arendt identificou a real ameaça da unanimidade de opinião como um fenômeno devastador das sociedades de massas que “tende a eliminar totalmente aqueles que divergem, pois a unanimidade de massa não é o resultado de uma concordância, mas uma expressão de fanatismo e histeria” (Idem, p. 658). Um fenômeno que abafa posições divergentes, absolutamente necessárias num jogo democrático, sobretudo quando há um conglomerado de pessoas incapazes de enxergar o que se passa embaixo do próprio nariz. “Todos os que acreditam em um governo democrático sabem da importância de uma oposição leal” (Idem, p. 660).

A questão que Arendt colocou há quase setenta anos e que permanece atual – e sem respostas – é: qual programa os sionistas têm a oferecer para a solução do conflito entre árabes e judeus? Se ainda houver disposição para que esses conflitos trágicos não permaneçam insolúveis, um retorno às críticas não ouvidas de Arendt parecem um bom caminho. Não é tarde para ouvir seu conselho: “se os sionistas perseverarem em reter sua ideologia sectária e continuarem com seu ‘realismo” míope, eles terão perdido até as pequenas chances que os povos pequenos têm nesse nosso mundo não muito bonito” (Idem, p. 633).

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Referência Bibliográfica: ARENDT, Hannah. Escritos Judaicos. Tradução: Laura Degaspare Monte Mascaro, Luciana Garcia de Oliveira e Thiago Dias da Silva. Amarilys, 2016: São Paulo, 2007.

 

*Nádia Junqueira Ribeiro é doutoranda em Filosofia (Unicamp)

* Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique, em parceria com a ANPOF, em 09/06/2021.

 

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