O que significa "trabalho alienado"? A atualidade de uma categoria de Marx

Maurício Vieira Martins

Professor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF

23/01/2024 • Coluna ANPOF

Em 2014, o pesquisador Jonathan Crary publicou seu livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Nele, são apresentados alguns dos experimentos contemporâneos destinados a prolongar ao máximo o tempo de vigília dos seres humanos. Antes direcionadas para segmentos militares da população, tais experiências agora visam atingir setores mais amplos das classes trabalhadoras. É como se a jornada de 24 horas de trabalho durante 7 dias da semana (daí o título do livro) se tornasse o horizonte de um sistema de produção onde a grande meta é o trabalho ininterrupto, diuturno, no qual o sono é visto como um desperdício desnecessário e contraprodutivo:

24/7 é um tempo de indiferença, contra o qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inadequada, e dentro do qual o sono não é necessário nem inevitável. Em relação ao trabalho, torna plausível, até normal, a ideia de trabalhar sem pausa, sem limites.[i]

A pesquisa contemporânea de Crary nos vem à mente tendo em vista que neste 2024 comemoram-se os 180 anos de um texto da juventude de K. Marx, conhecido como os Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844. Pois é nesta obra que é desenvolvida com mais vagar a categoria do trabalho alienado (ou trabalho estranhado, die entfremdete Arbeit[ii]).

Marx caracteriza o trabalho alienado como aquela atividade em que o produtor não só não se reconhece no objeto afinal produzido - uma mercadoria - como esta última finda por sobrepujá-lo. Apropriada pelo dono dos meios de produção - dentro de um rígido sistema de divisão do trabalho - tal mercadoria se sobrepõe e ofusca quem a criou. Mas a rigor, não é só em relação ao objeto produzido que o trabalho se aliena: o próprio transcurso da atividade, longe de ser uma afirmação das forças humanas, é vivido como mortificação, como um esvaziamento de si. Marx usa palavras fortes para se referir ao trabalho estranhado: designa como emasculação (Entmannung) e como mortificação (Kasteiung) a atrofia mortal da energia humana quando capturada por uma rede de alienações que tem sua gênese no cotidiano capitalista, fortemente marcado pela propriedade privada dos meios de produção e pela divisão do trabalho. E mais ainda: a própria espécie humana e o outro ser humano são postos numa relação de exterioridade e estranhamento em face de cada indivíduo que, desconhecendo seu pertencimento a uma espécie, torna-se uma mônada fechada sobre si mesma.[iii]

Ao longo do século XX, alguns autores aproximaram os Manuscritos de 1844 da Fenomenologia do Espírito de Hegel[iv], argumentando que, se neste último pensador era o Espírito quem se alienava progressivamente na natureza, já em Marx seria a própria atividade humana que se estranha de si mesma. Ainda que a importância de Hegel na formação de Marx seja inegável, tal aproximação a meu ver perde algo essencial: o pensamento marxiano lutando por alcançar seu campo próprio de expressão, ao afirmar, por exemplo, a objetividade como propriedade primária de todos os seres. “Um ser não objetivo é um não ser[v], escreve Marx, em crítica explícita ao grande mestre do idealismo. O trabalho alienado tem uma incontornável materialidade.

Embora os exemplos apresentados no texto de 1844 sejam mais relacionados ao trabalho fabril, mesmo atividades distantes desta esfera da produção ingressam no circuito da alienação. Até a atividade artística - que por suas características costuma ser citada como exemplo de atividade humana que dispõe de maior autonomia - não escapa desta lógica estranhada. Tanto por parte dos produtores artísticos quanto por parte dos teóricos que se debruçam sobre o fenômeno estético, são frequentes as referências à repetição de certos padrões que se mostraram bem sucedidos no mercado. Th. Adorno, em seus estudos sobre a indústria cultural, forneceu exemplos eloquentes de patterns que se repetem à exaustão a partir de seu sucesso inicial. Consequência disso são os inúmeros casos de artistas que, após um promissor início de carreira, sucumbem ao longo do tempo à pressão homogeneizadora e alienante do sistema produtor de mercadorias.

Quanto aos pressupostos filosóficos de Marx que possibilitaram sua crítica ao trabalho estranhado, uma ressalva se faz necessária. Seu enfático registro da dramaticidade da alienação do trabalho não deve ser confundido com uma redução dos seres humanos à sua dimensão laboral. Pois quem se dispõe a garimpar na densa estrutura dos Manuscritos Econômico-Filosóficos descobrirá que, na verdade, o que o texto mais valoriza é a atividade (Tätigkeit), atividade plural, que interage com diferentes segmentos da realidade. O trabalho (Arbeit) é ententido como um encolhimento de uma atividade que é potencialmente plural: Marx não era um defensor do que hoje nomeamos como um produtivismo. O trabalho humano é por ele apreendido em sua contraditoriedade: forma de exteriorização de capacidades humanas, sim, mas ao mesmo tempo, veículo para a alienação. Naquela que é uma das passagens mais desconcertantes dos Manuscritos - e que mostra também como é simplificada a imagem que temos de seu autor - podemos ler que:

Hegel se coloca no ponto de vista da Economia Política moderna. Concebe o trabalho como a essência do homem, que se prova a si mesma; ele só vê o aspecto positivo do trabalho, não seu aspecto negativo. O trabalho é o devir para si do homem dentro da alienação, ou como homem alienado (p. 188).

Talvez seja a nossa mentalidade contemporânea, muito marcada por dicotomias, que tenha dificuldades em captar a complexidade de uma exteriorização humana que, sob determinadas circunstâncias históricas - ressalva decisiva - transforma-se numa recorrente alienação.

O fato é que o leitor dos Manuscritos de 1844 acompanha como os seres humanos se veem cada vez mais enredados dentro de uma engrenagem que extrai valor e mais valor deles mesmos. Situação que, em sua contraditoriedade, gera um mundo de riquezas inacessível para seus produtores. Aqui, é impossível não mencionar os contundentes relatórios contemporâneos da OXFAM (Confederação Internacional que se dedica a pesquisar e combater a fome e a desigualdade da riqueza) que já em 2022 demonstravam que “Os 10 homens mais ricos do mundo têm hoje seis vezes mais riqueza do que os 3,1 bilhões mais pobres do mundo.”[vi]

Por outro lado, sabemos que a partir da terça parte do século XX surgiram teorias que prognosticavam um crescente declínio do uso da força de trabalho humana. Ainda que com diferenças significativas, partilhavam da ideia de que a automação crescente dispensaria cada vez mais o uso do trabalho humano. O fascínio promovido pela revolução eletrônica teve sua contrapartida cultural na produção de filmes onde é recorrente o tema de robôs que produzem outros robôs. O grupo alemão Krisis, em seu famoso Manifesto contra o trabalho de 1999, usou palavras provocativas para referir-se ao suposto declínio da venda da força de trabalho humana: “A venda da mercadoria força de trabalho será no século XXI tão promissora quanto a venda de carruagens de correio no século XX.”[vii]

Forçoso é reconhecer que o transcurso histórico não confirmou tal previsão. Longe disso. O que temos no nosso século XXI é uma configuração histórica portadora de um desenvolvimento tecnológico inaudito, sem dúvida, mas que convive com multidões de trabalhadores precarizados e mal remunerados. Ao invés do fim da sociedade do trabalho, presenciamos uma expansão da jornada de trabalho mesmo sobre aqueles períodos que tradicionalmente se constituíam como tempo livre: fins de semana, feriados, turnos da noite (daí a mencionada referência à semana de 24/7, sintoma de uma jornada de trabalho imparável). Isso para não mencionarmos aqueles que mergulham no desemprego puro e simples, constituindo o que certa vez o sociólogo Zygmunt Bauman designou com o incômodo nome de refugo humano: são os sobrantes de uma sociedade que não encontram condições para viver e exercer suas potencialidades de vida. De novo aqui, ao examinarmos a produção cinematográfica de nossa era, vemos que este é um tema maciçamente explorado por ela. O neologismo futuro distópico a rigor não se refere ao futuro: é o nosso próprio presente que é capturado e transfigurado pelas lentes da indústria cinematográfica.

As considerações sobre a dura atualidade do trabalho alienado fazem pensar que o retorno a certos textos fundadores de Marx nos permite examinar a gênese de uma configuração sócio-histórica que hoje atinge seu paroxismo. Pois o fato é que em 1844, aos 25 anos de idade - e ainda distante, muito distante, de suas grandes obras da maturidade -, o jovem Marx num primeiro contato com a Economia Política dispôs-se a revisar sua herança filosófica para melhor visualizar a hidra que se formava diante de seus olhos.

Será excessivo afirmar que este encontro da Filosofia com a Economia Política mudou o panorama de parte da história do pensamento?


Notas

[i] Jonathan Crary. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Ubu Editora, p. 19.

[ii] Karl Marx. Manuscritos: Economia y Filosofia. Madrid: Alianza Editorial, p. 104. Existe uma volumosa literatura que discute qual a tradução mais adequada para a expressão utilizada por Marx, die entefremted Arbeit. Admite-se tanto a tradução por trabalho alienado como trabalho estranhado. Neste breve artigo de divulgação, usarei alternativamente as duas expressões.

[iii]  Analisei com mais vagar os níveis de alienação abordados por Marx no capitulo 6 de meu livro Marx, Spinoza and Darwin: Materialism, Subjectivity and Critique of Religion. Palgrave Macmillan, 2022.

[iv] H-G. Flickinger. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM.

[v] K. Marx. Manuscritos. p. 195.

[vi] OXFAM - A desigualdade mata. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/a-desigualdade-mata/

[vii] Grupo Krisis. Manifesto contra o trabalho. 1999 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7829978/mod_resource/content/1/Manifesto%20contra%20o%20Trabalho%20-%20Grupo%20Krisis.pdf


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