O Sagitário da Filosofia Brasileira (sobre Oswaldo Porchat)

Prof. Dr. Marcelo Carvalho

UNIFESP

22/12/2017 • Coluna ANPOF

A filosofia brasileira, sobretudo a paulista, por muito tempo pensou a si própria a partir do mito de que o trabalho rigoroso de leitura de texto, a leitura estrutural ensinada pelos franceses, era incompatível com a construção viva e atual da filosofia. Não é raro que se encontre a afirmação de que esse trabalho rigoroso sobre o texto estaria na origem de uma certa inapetência da filosofia (paulista!) para a polêmica aberta e para a elaboração sobre questões contemporâneas.

Os dois lados dessa suposta dicotomia foram apresentados a mim simultaneamente em 1989, no segundo ano de minha graduação. Ambos compunham a figura insólita de Oswaldo Porchat, ao mesmo tempo arauto do rigor na leitura dos textos (tradutor, com Ieda, do ensaio metodológico de V. Goldschmidt), e argumentador incansável sobre os mais diversos temas contemporâneos, autor de um projeto filosófico próprio, firmemente voltado a pensar a filosofia a partir de sua própria experiência. Tive a oportunidade de falar a Porchat sobre o impacto que teve sobre mim aquela dupla provocação, apresentada sem contradição, como dois lados de uma mesma moeda, duas partes da mesma aula. Porchat foi a maior influência em meus anos de formação. Suas aulas da graduação sobre ceticismo grego redirecionaram meus interesses e definiram minha maneira de trabalhar com filosofia. Aprendi, a partir daquele encontro, a me dedicar à estruturação minuciosa do que lia, a procurar o vento e o relevo interno ao texto, que determinava seu curso. Mas aprendi sobretudo a entrar de imediato em debate com esse mesmo texto, a apropriar-me dele e combatê-lo, a atualizá-lo e questioná-lo.

Mais tarde Porchat foi meu orientador de mestrado e, enfim, um querido amigo. É para mim muito claro que as descrições e histórias que conto sobre ele reproduzem o tema clássico de um pai firme e carinhoso. Foi ele o responsável pelos cursos mais difíceis que assisti. O caso extremo foi uma disciplina na pós-graduação em que eu e os outros três ou quatro alunos precisávamos entregar um artigo por semana, para leitura e discussão (sintomaticamente, alternando leituras rigorosas de textos e embate com esses mesmos textos). E foi o leitor mais crítico que meus textos já tiveram – textos sempre devolvidos com anotações detalhadas e um forte cheiro dotabaco que fumava enquanto os lia. Mas Porchat foi também o professor mais cuidadoso e atencioso que tive na universidade, irônico e dedicado, atento ao que se dizia a ele, e que convidava a todos para ouvir suas histórias e para falar da vida.

O resultado daquele curso de 1989 foi minha certidão de nascimento para a filosofia, o únicotrabalho escolar de que tenho orgulho: um comentário cético das duas primeiras meditações de Descartes. Revi esse trabalho há alguns anos, para um evento em homenagem a Porchat. Seu título explicita a identidade sagitária que Porchat tem para mim: “O Rigor da Dúvida”. Revisitar sua forma de viver e debater a filosofia é encontrar uma matriz muito mais interessante do que aquele desencontro entre compreensão e invenção a partir do qual tantos infelizmente gostam de definir sua identidade.

A obra filosófica que Porchat nos deixa é de primeira grandeza, ao mesmo tempo acessível e cuidadosamente elaborada. Garantir sua circulação e fazer as mediações necessárias para que ela se apresente atual e relevante como seu autor pretendia é uma tarefa de grande importância. Mas que se registre meu lamento por aqueles que não viram esse trabalho apresentado com o vigor da voz potente e imponente de seu autor, e com a empolgação que ninguém mais tinha para o debate. O que se via ali era uma filosofia de primeira grandeza sustentada e vivida por um homem de primeira grandeza.

ANPOF 2017/2018

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