O segredo é pisar suave: a inflexão do mundo Juruá a partir dos modos de vida dos Guarani Mbya da Terra Indígena Tenondé Porã
Silvia Brandão
Mulher constituída por ancestralidade Guarani de raiz matrilinear originária do território de Bela Vista (MS), fronteira do Paraguai com o Brasil; doutora em Filosofia (Unifesp), onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado.
20/03/2024 • Coluna ANPOF
O texto emerge do desejo de compartilhar com não indígenas o pensamento vivo dos Guarani Mbya da Terra Indígena Tenondé Porã, Aldeia Kalipety, localizada no extremo sul da cidade de São Paulo, durante o curso Nhande’i va’e’reko: aprendendo sobre o modo de vida guarani. Uma parceria entre a Casa do Povo, a Aldeia Kalipety e o Centro de Trabalho Indigenista. Ha’evete!!(Obrigada!!).
A partir da experiência vivenciada, percebi com redobrada intensidade como os constituídos pela epstemologia ocidental valorizam o escrito, enquanto os originários tradicionalmente transmitem suas memórias e seus modos de vida por meio de suas práticas e da oralidade. No território inventado Brasil, esses modos de agir têm sido parte das táticas de resistência de diversos povos indígenas.
Assim, enquanto os brancos comem a terra, a água (yy), o rio (yakã), a árvore (yvyra), o sol, o ar e tudo mais que habita o planeta; os originários, sabendo pertencer a Terra e ao território, mantêm seus modos de ser contrários à vida útil inventada pelo colonialismo e suas posteriores atualizações. Embora oficialmente sejam hoje menos de 1% da população brasileira, são eles que seguram A queda do céu e por isso lhes devemos gratidão.
Ocorre que no atual estágio da vida humana na Terra agradecer é insuficiente, é preciso também agirmos como aliados, assumirmos nossas incapacidades e aprendermos com os originários sobre outras lógicas de existência. Se o caminho parece complexo, o curso Nhande’i va’e’reko proporcionou experimentações.
Durante o curso, por meio da sabedoria das trocas e das práticas, os Guarani ensinaram um pouco de seus modos de vida. Os encontros aconteceram dentro e fora das aldeias. Na Casa do Povo, dentre outras partilhas, tive contato com a língua Guarani Mbya. A cada palavra me deparava com um conceito-mundo como nhandé kuery (todos nós ou nós sem exclusão) ou aguyjevete (desejo de boa acolhida, experiência de carinho e afeto, bem-estar espiritual, gratidão profunda). Ha’evete!!
Os Guarani também dividiram com os participantes a força de seu canto a partir do cantar em conjunto, fazer junto. Numa dessas ocasiões e sem uma receita a priori acerca de qual o melhor caminho a seguir, conversamos sobre o bom caminho como aquele que se escolhe a cada dia e sua relação com a espiritualidade. Ao final, cantamos juntos: “nós vamos caminhar sempre pelos caminhos bons”.
Nesses encontros descobri também um pouco acerca do significado do milho (avaxi). Enquanto nos fartamos de nossas comidas envenenadas, para os Guarani, o milho é um alimento ancestral e sagrado cujo plantio e o consumo os fortalece física e espiritualmente à vida e à luta. Contou também a liderança Jerá Guarani, se por muito tempo eles ficaram sujeitos apenas ao consumo de nossos venenos, em paralelo ao processo de demarcação da Terra Tenondé Porã, eles começaram a trabalhar com projetos de retomada da alimentação tradicional. Por decorrência, antes mesmo de sair a portaria declaratória do Ministério da Justiça (2016), eles ocuparam a aldeia Kalipety e começaram a plantar. Em seis anos haviam recuperado mais de 9 tipos de milhos tradicionais.
Num outro momento fomos iniciados no mundo dos sonhos e sua conexão com Nhanderu (pai de todos). Para eles, é preciso saber analisar os sonhos. Eles podem ser falsos, mas também significar coisas que vemos antes e assim nos preparam para o que virá e para o que podemos evitar. Nhanderu é quem dá essa visão. Entretanto, nem tudo são sonhos, preparações, harmonia, amor e respeito na vida dos Guarani Mbya da Terra Tenondé Porã.
Eles nos falaram sobre doenças físicas e espirituais que os atingem. Devido a invasão branca, muitos deles sofrem com a desterritorialização e com as implicações do racismo anti-indígena. Afetados por essas violências, ainda que alguns consigam se curar por meio da ação dos pajés e suas rezas, outros adquirem comportamentos depressivos e outros ainda cometem suicídios.
Todavia, embora a violência os atinja desde a invasão europeia, para os Guarani Mbya da Terra Tenondé Porã, a ditadura (1964-1988) se constitui como parte dos marcos emblemáticos. Durante a visita à aldeia Kalipety, Jerá Guarani falou um pouco disso. Dentre outras questões, contou sobre os efeitos do militarismo nos modos de ser Guarani. Segundo seu relato, durante a ditadura, em seu território, além dos caciques surgiram figuras masculinas de mando designadas como cabos e capitães, expressões que nem mesmo existem na língua Guarani. Essas figuras de comando batiam, chicoteavam e amarravam pessoas no tronco. Eles traziam muita violência, principalmente para as mulheres.
Ainda, para além dessas figuras impostas pelo militarismo ditatorial, Jerá Guarani contou que tradicionalmente os lugares de mando ficavam com os homens. Por consequência, ações relacionadas a demarcação das terras em geral ficavam nas mãos de uma pessoa: o cacique. Devido ao poder exercido pelos caciques, suas famílias acabavam por deter privilégios como se tornarem caciques por hereditariedade e não por merecimento.
Contudo, ao menos para os Guarani Mbya, no percurso de retomada e demarcação da Terra Tenondé Porã, esse modelo começa a se romper. Desse modo, se tradicionalmente o exercício da liderança e do poder estavam com os caciques, no contexto da retomada da Terra Indígena Tenondé Porã, mulheres como Jerá Guarani passaram a ser reconhecidas em suas aldeias como lideranças. O poder hierárquico e masculino se deslocou do cacique para a comunidade, constituindo-se assim uma vida sem caciques. No lugar de um mando verticalizado e masculino, emerge então um Conselho horizontalizado e composto por mulheres e homens que buscam fazer junto (joupive’i).
Das visitas nas aldeias vale destacar também algo talvez menos visível ao grupo, mas que afetou certos participantes de modo especial. Na aldeia Kalipety, por meio de objetos que estavam dispostos no território como um fumo de corda ao lado de uma cuia de mate, alguns de nós fomos transportados às memórias de convívio com nossos avós e avôs. Nessa ocasião, creio que sentimos uma espécie de presença de nossos parentes por meio daqueles objetos de uso cotidiano do povo das aldeias, mas que eram também usados por nossos avós e avôs. Depois, na aldeia Y-Porã aconteceu algo parecido. Nessa ocasião, a fala de dona Iara, liderança e parteira, levou-me a imaginar a vida de minha avó com a qual passei a infância na brincadeira, pois sei que antes de São Paulo ela era também parteira. Ha’evete!!
Também durante a visita à Aldeia Y-Porã, por meio do narrado por dona Iara, percebemos a diferença entre o modo branco e o Guarani de fazer nascer humanos. Embora o nascimento de novas vidas seja fundamental à continuidade do povo Guarani, esse acontecimento pode ser brecado pelo uso de técnicas brancas impeditivas da concepção, assim como pode ocorrer sem cesariana, anestesia ou hospital. Não que os Guarani recusem a medicina dos brancos, se necessário fazem uso dela. No entanto, para eles, o melhor parto parece ser o estar junto: a mãe, o bebê e a parteira. Será que há forma mais amorosa, cuidadosa, harmoniosa e respeitosa de se viver essa boa hora? Ou será que nós mulheres preferimos a impessoalidade dos hospitais e as dores das anestesias e dos partos programados?
De fato, as visitas nas aldeias me marcaram de modo especial. Em outras palavras, nelas vivenciei com intensidade a distância entre o modo de vida branco (individualista e destruidor da Terra) e o modo de vida dos Guarani, que existem como sujeitos coletivos, cozinham com a lenha no chão de terra, fumam cachimbo sentados na terra e deixam suas crianças viverem com os pés na terra, mas cercadas de amor e felizes. Nessas ocasiões tive também a oportunidade de pisar na terra, atravessar pontes, percorrer estradas e trilhas, sentir a pedra, o vento, o ar, as águas, nadar com as felizes crianças Guarani, ouvir os pássaros, o coral das aldeias, conhecer as casas de rezas, comer da comida tradicional como o Chipa e o Mbeju, admirar as artes dos Guarani, conversar com o povo das aldeias e com lideranças como Jerá e Iara. Tudo isso foi muito bom, senti-me leve e alegre.
Ao final, os afetos que envolveram esses encontros despertaram memórias indígenas em algumas de nossas memórias brancas. Algo como o que poderia ter sido, mas não foi. De minha parte, para além das memórias acerca de minha avó, penso que saio compreendendo um pouco do modo de vida Guarani e fortalecida pela vivência numa comunidade que age em coletividade e pelo coletivo, assim como pratica o respeito para com os diferentes de si e os ensina a agir do mesmo modo. Talvez parte do segredo esteja em aprendermos a pisar suave. Aguyjevete!! Ha’evete!!!
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.