Os artistas e os fabricantes de arte
Flávio Rocha de Deus
Doutorando em Filosofia (UFOP)
25/03/2025 • Coluna ANPOF
Em seu discurso comunicado em 1957 na Universidade de Uppsala, na Suécia, onde se encontrava pela ocorrência de sua premiação ao Nobel de literatura deste mesmo ano, Albert Camus, mesmo que em um uso avulso e pontual de seu tema principal (o papel do artista na sociedade contemporânea), estabelece em sua fala uma curiosa distinção entre “artistas” e “fabricantes de arte”.[1] Tal distinção não é meramente semântica, mas que carrega implicações éticas, estéticas e filosóficas dentro do escopo intelectual do próprio escritor. Ainda que pouco abordada no discurso, essa contraposição merece atenção, pois nos ajuda a refletir sobre a tensão entre autenticidade e instrumentalização da arte.
Para Camus, enquanto o “fabricante de arte” produz suas obras essencialmente pelas demandas externas, sejam elas mercadológicas, políticas ou ideológicas, o artista se engaja livremente com a realidade, de forma sagrada e profana, buscando comunicar, pelo instante de sua percepção, algo que lhe é, simultaneamente, ineludível a sua experimentação pessoal do mundo e comunicável a todos pela condição humana compartilhada. Por exemplo, ao homenagear Dostoiévski em 1955, Camus exaltou como maior mote da qualidade da arte do escritor russo a sua habilidade de nos revelar a densidade da natureza e da experiência humana; em suas próprias palavras “[e] revelar é bem a palavra. Pois ele [Dostoiévski] só nos ensina o que sabemos, mas nos recusamos a conhecer”[2], pois, por meio de sua arte, ao mesmo tempo que ele realiza um genuíno e livre exame de si, também realiza um genuíno e livre exame de todos.
Camus sugere que a atividade do verdadeiro artista vai além da mera criação de um objeto cujos signos e relações sócio-institucionais lhe atribuem o valor de “Arte”, sua obra não é apenas um produto para consumo, mas uma expressão de sua revolta contra o absurdo, é sua humanidade materializada; é o seu sonho encarnado.[3] Em uma existência sem sentido dado, mas cheia de sentidos a serem percebidos, o artista, em contato com o vazio do real, o preenche com as criações que sua vida lhe solicita. Essa aplicação de vida ao mundo, Camus chama de estilo. Este estilo, como podemos observar na IV parte d’O homem revoltado (1951), é a “[...] transformação que o artista impõe ao real”, é a linguagem pela qual o artista se realiza, é o universo semântico em que ele reina, é o estado mais pleno em que o homem se revolta contra sua tragédia, ele concorre com Deus e cria seu próprio universo onde “sua unidade e seus limites” podem, fugazmente, imperar. [4]
Neste ínterim, os “fabricantes de arte”, em paralelo oposto aos artistas, produzem obras sem esse comprometimento consigo mesmos; podem possuir habilidade técnica, podem até criar obras que sejam esteticamente agradáveis, mas suas criações são destituídas do espírito de revolta. Eles estão mais preocupados com o reconhecimento, o sucesso comercial, ou com a perpetuação de estilos e modas, do que com a verdadeira função da arte como uma forma puramente ativa de revolta e experimentação da vida. Neste momento, de fabricação pura da arte, nos diz Camus, o artista “[...] desestimula a criação livre, investindo contra o seu princípio essencial, que é a confiança do criador em si mesmo”[5], pois submete sua criação ao mero atendimento às demandas externas, seja para agradar ao mercado, seja para servir a uma ideologia, ele se abnega do ápice da experiência artística: sua liberdade. O fabricante de arte, portanto, não está comprometido com a experimentação da condição humana em sua atividade mais humana.
Paralelamente, no entanto, isso não significa que o artista deva se isolar completamente da sociedade para preservar uma suposta pureza criativa; Camus não defende um solipsismo do artista, como se a criação artística devesse ocorrer em completo isolamento do mundo exterior. O que o filósofo da Argélia enfatiza é a importância de uma autonomia dialética, na qual o artista mantém uma relação crítica e engajada com a sociedade, mas não subserviente, pois, se o artista “recusar cegamente à sociedade” e “decidir isolar-se em seu sonho, ele estará exprimindo apenas uma rejeição. Teremos então produtos de criadores de entretenimento ou de gramáticos da forma”.[6] Neste escopo, “A arte pela arte, divertimento de um artista solitário, é justamente a arte artificial de uma sociedade factícia e abstrata”[7].
A arte não pode ser um monólogo, mas deve ser um diálogo com a realidade e com os outros. O verdadeiro artista, ao mesmo tempo em que se engaja com o mundo, mantém uma independência criativa. Como nos diz o próprio filósofo: “A arte não é a recusa total nem o consentimento total ao que existe. É ao mesmo tempo recusa e consentimento, e por isso não pode deixar de ser um embate perpetuamente renovado. O artista está sempre nessa ambiguidade, incapaz de negar o real, porém eternamente destinado a constá-lo no que ele tem de eternamente inacabado”[8]. Assim, o objetivo da arte “não é legislar nem reinar, mas, antes de mais nada, compreender”[9]
Diante dessa diferenciação, entre o artista e o fabricante de arte, permanece uma questão inesquivável: como podemos, inequivocamente, distinguir uma criação autêntica de uma produção meramente instrumental? A resposta: não podemos. O problema nesta estrita distinção é que, assim como só o agente moral kantiano pode ter certeza de que sua ação é legítima – pois apenas ele conhece a intenção que a guia –, só o artista pode saber, verdadeiramente, se sua obra é autêntica. Se, por um lado, a distinção proposta por Camus nos convida a refletir sobre a função existencial e quase metafísica da arte, por outro, ela nos confronta com os limites de nossa capacidade de julgar a legitimidade da criação alheia.
A subjetividade desse critério lança um desafio inevitável: se a autenticidade depende de uma verdade interna inacessível a outros, como evitar que o julgamento da arte se transforme em um exercício arbitrário ou em um moralismo estético? Diante dessa incerteza, Camus também parece nos sugerir que a arte autêntica não se define apenas pela intenção do criador, mas pelo impacto que ela causa – pela sua capacidade de revelar a condição humana em sua complexidade. Neste escopo, a consagração da obra de arte não reside apenas na criação, mas também na maneira como nos relacionamos com as obras, na forma como ela ressoa no mundo e desafia aqueles que a contemplam, buscando nelas não apenas signos de valor, mas vestígios daquela verdade carnal que Camus tanto exaltou.
Referências
CAMUS, Albert. Youthful Writings. Introduction by Paul Viallaneix. Translated by Ellen Conroy Kennedy. New York: Vintage Books, 1977.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. 13º Edição. Rio de Janeiro: Record, 2019.
CAMUS, Albert. Conferências e discursos: 1937-1958. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2023.
Notas
[1] Cf. Camus, 2023, p. 352.
[2] Ibidem, p 288-289.
[3] Cf. Idem, 1977, p. 215.
[4] Idem, 2019, p. 349.
[5] Idem, 2023, p. 350.
[6] Ibidem, p. 351.
[7] Ibidem, p. 353
[8] Ibidem, p. 363.
[9] Ibidem, p. 365
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