PANDEMIA E EDUCAÇÃO ON-LINE: CONTRA A DESPROFESSORALIZAÇÃO E A AUTOMAÇÃO DO ENSINO
Jelson Oliveira
Professor do Programa de Pos-Graduação em Filosofia da PUCPR
20/08/2020 • Coluna ANPOF
Jelson Oliveira é professor do programa de pós-graduaçãoem Filosofia da PUCPR;
membro do GT Hans Jonas e coordenador do GT
de Filosofia da Tecnologia e da Técnica da ANPOF.
A história da educação on-line remete a meados do século passado quando começaram a ser desenvolvidos cursos que aproveitassem os novos equipamentos tecnológicos para oferecer outras possibilidades de acesso à educação. O início mais ou menos frustrante do projeto foi contornado, a partir de 1980, pelo processo acelerado de apropriação por parte das empresas capitalistas neoliberais que viram na educação on- line uma chance de obter lucros, principalmente por meio de dois aspectos conjugados: a desprofessoralização (que é também uma desprofissionalização) e a automatizaçãodos processos. A consequência todos conhecemos: a ideia de utilizar a tecnologia para oferecer aulas como se fossem programas de audiência de massa, com baixo custo, sem interação e com docentes despreparados (e não raro resistentes) para as novas tarefas, acabou gerando muita desconfiança em relação a esse modelo, principalmente devido à baixa qualidade das ofertas.
O filósofo da tecnologia Andrew Feenberg acompanhou esse processo de perto e desenvolveu uma reflexão que coloca em questão não apenas a própria educação on-line (ou mesmo a tecnologia que a apoia), mas o modo como essa educação foi apropriada pelos interesses do mercado neoliberal. Sua análise está baseada numa concepção social construtivista da tecnologia: segundo ele, a tecnologia é construída e orientada pelos interesses de grupos sociais que estão em disputa por seu domínio. Nesse caso, o problema não é a tecnologia, mas o modo como ela é apropriada socialmente. Consequentemente, a tecnologia está sempre em disputa e é preciso que ela seja democratizada, ou seja, que nela sejam incluídos os interesses daqueles que não participam diretamente da sua elaboração (do seu design), como por exemplo, as populações mais vulneráveis e a própria natureza. Para Feenberg a tecnologia é um elemento central da vida humana moderna, diante do qual não há outro caminho a não ser participar da disputa de narrativas, recusando a mera tecnofobia e, no campo da educação, “reconciliar os valores acadêmicos tradicionais com as mudanças introduzidas pela nova tecnologia” (2020, p. 6), isso porque, nas últimas décadas “uma parcela cada vez maior de nossa vida social passou a ocorrer no ciberespaço”, o que demanda, por si, o interesse das humanidades e mesmo daqueles que se mantém mais reticentes ou críticos a esse processo.
Em seu texto The Online Education Controversy and the Future of the University, de 2015, Feenberg destaca que a busca por lucro fácil acabou tendo como consequência a diminuição dos investimentos em formação de professores: segundo o autor, além da criação de uma dependência da universidade em relação ao mercado, que passou a orientar as pesquisas por meio dos investimentos, a desqualificação é uma das consequências mais danosas da apropriação da educação pelo mercado neoliberal, porque levou a uma “crescente substituição do corpo docente da faculdade por professores temporários menos qualificados” (2020, p. 2) e contratação de profissionais de todo tipo, servindo de monitores e interventores tecnológicos para pilotar os equipamentos disponíveis.
Ora, um processo desse tipo está sempre em disputa e, para Feenberg, os professores passaram a ocupar um lugar de resistência precisamente porque começaram a “desenvolver novas modalidades educacionais dentro do quadro dos valores acadêmicos tradicionais” (2020, p. 2), ou seja, exercendo sua profissão e contrapondo aos processos de automatização e desprofessionalização, aquilo que a educação não poderia deixar de produzir: as relações pedagógicas e metodológicas de interação que serviam de questionamento e, ao mesmo tempo de resistência ao modelo neoliberal.
Estaríamos, assim, diante de dois modos de entender a utilização da tecnologia no campo da educação: de um lado, as instituições educacionais meramente mobilizadas pela intenção de lucro fácil e, de outro, os docentes e estudantes empenhados em democratizar a educação por meio da tecnologia. O que ambas têm em comum é a convicção de que não é possível evitar que a tecnologia, sendo um evento tão importante e de tão largos impactos sobre a vida humana nos últimos séculos (e com avanços impressionantes nas últimas décadas), afete também a educação.
Enquanto são desenvolvidos modelos automatizados, com aulas gravadas por professores estrelados e monitoria de tutores mal formados e mal pagos, nas quais os processos de ensino e aprendizagem continuam reduzidos à busca pelo show ou por uma pretensa boa performance, especialistas e docentes preocupados com a qualidade desse projeto tentam desenhar um outro modelo de educação on-line, baseado na compreensão da tecnologia como uma ferramenta útil para aproximar pessoas, incluindo nos processos educativos os valores e as intenções da educação integral, inclusiva, extensiva e de qualidade, compreendida como um direito de todos/as.
A mudança imposta pela pandemia do coronavírus em 2020 e suas consequências para a educação, somadas à imobilidade e ineficácia das autoridades, exigem uma atitude ativa, a fim de que sejam explicitadas as verdadeiras intenções e que a oportunidade não seja perdida: docentes, discentes e gestores universitários precisam problematizar suas demandas e participar da disputa pelo desenho de um modelo que beneficie toda a sociedade e que reforce o direito à educação como um direito de todos os seus membros, evitando o que Feenberg chamou de “moinho de diploma digital” (2020, p. 5).
É preciso combater a desprofessoralização, com qualificação docente nas novas tecnologias e, de outro, resistir à automação desenvolvendo metodologias adequadas e promovendo a interação, como alternativa ao modelo da mera transmissão de informação, por meio de agentes pouco preparados e bastante mal pagos, segundo a lógica da redução de custos trabalhistas. Do contrário, fará sentido perguntar: por que ainda um professor, se um computador pode oferecer uma experiência (deveríamos dizer: audiência) mais qualificada? As experiências dos anos 1950, relatadas pelo professor Feenberg, revelam o fracasso não da tecnologia, mas da própria pedagogia – a qual, baseada unicamente na transmissão de instrução, falha sempre, seja no modelo presencial, seja no on-line. Com a ajuda da tecnologia, a metodologia que compreende e incentiva nos estudantes um comportamento “passivo”, perverteu a ideia de educação on-line, restringindo-a a um “diferente propósito: não para acrescentar o contato humano na educação a distância, mas para eliminá-lo da aula” (2020, p. 5).
O que a tecnologia oferece agora e a pandemia nos obriga, é a chance de fazermos a educação se voltar para novos hábitos, superando os vícios que se acumularam ao longo do tempo, entre os quais está a resistência às mudanças. Fazemos hoje o que nossos predecessores faziam no século XVII ou o que nossos ancestrais faziam desenhando suas histórias no fundo de cavernas. Embora eles tenham, com isso, dado uma contribuição enorme para o conhecimento e para a cultura humanas (algo que não está, aqui, em absoluto, em discussão), há de se convir que podemos aproveitar as novas ferramentas para criar coisas tão grandiosas quanto as que eles fizeram.
A qualificação do profissional, o investimento na formação dos professores é, por isso, um dos pontos fundamentais para que possamos entrar nessa batalha com as armas eficazes. Isso significa que tais profissionais devem ser amparados por suas instituições de ensino porque, a bem da verdade, a maior parte daqueles que atuam no ensino superior, não obteve (por vários motivos) preparação didático-pedagógica para isso, mesmo na área das licenciaturas. Trata-se de desenvolver novas metodologias de ensino, capazes de promover a motivação e o engajamento dos estudantes, tornando-os agentes de suas próprias descobertas. O professor, nesse caso, é o designer e o estrategista de um processo que é levado a cabo pelo próprio estudante que, ativamente, reúne as condições necessárias para alcançar o desenvolvimento de todas as suas potencialidades. A presença do professor não se legitima porque ele precisa ajudar o estudante; mas porque ele, pela sua estratégia, ajuda o estudante a ajudar a si mesmo.
Além disso, o número adequado de estudantes em sala, com acesso a redes de conexão e a dispositivos adequados (afinal, vivemos em um país em que grande parte dos estudantes sequer têm acesso à internet), é imprescindível para que o processo ocorra de forma suficiente e que processos avaliativos sérios sejam levados à frente. Trata-se de superar a mera transmissão de informações em benefício de um modelo de interação, no qual o conhecimento seja construído conjuntamente e o ambiente virtual seja um espaço de intercâmbio, convívio, influência mútua, associação, trabalho coletivo e engajamento sincrônico em torno de tarefas comuns. Isso, como se sabe, não será um produto fortuito, mas algo buscado intencionalmente e criado coletivamente, tendo como atores centrais os docentes. Amparados por instâncias de assessoria pedagógica, são eles que desenvolverão as estratégias, que testarão inovações, avaliarão riscos e benefícios.
Referências
FEENBERG, A. A Polêmica Educação Online e o Futuro da Universidade. Tradução de Maureen Mourning. Disponível em: https://www.sfu.ca/~andrewf/a%20polemica.pdf Acesso em: 25 jul. 2020.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUCRio, 2006.
VALENTE, J. A. Computadores e conhecimento: repensando a educação. Campinas: Unicamp, 1993.