Para as novidades envelhecidas a respeito do pragmatismo - vamos dar à Wesen, ciao. Cassiano Terra Rodrigues
29/09/2020 • Coluna ANPOF
Cassiano Terra Rodrigues - Professor do IEFH-ITA
Membro do Centro de Estudos de Pragmatismo – PUC-SP
Não é de hoje que se defende que Nietzsche teria antecipado o pragmatismo antes dos pragmatistas estadunidenses. Ao menos no Brasil, Scarlett Marton há décadas defendeu o argumento (2006). Recentemente, nesta coluna, André Itaparica retornou ao assunto. Logo após ler o texto do prof. Itaparica, comentei nas minhas redes digitais: se incluído o velho Peirce no debate, essa afirmação não se sustenta. A conversa rendeu e, após intervenções do próprio prof. Itaparica e dos profs. José Crisóstomo de Souza, Fernando de Moraes Barros e Renato Rodrigues Kinouchi, resolvi escrever este texto.
O cerne do pragmatismo avant la lettre (sic) de Nietzsche estaria na naturalização do conhecimento em vista de necessidades práticas e a consequente deflação instrumental da verdade – a finalidade biológica de sobrevivência é o critério da verdade. Nietzsche teria sido, então, o primeiro a mostrar como o cogito cartesiano seria resultado de um processo natural de raciocínio, enraizado na fisiologia humana. Essa ideia estaria relacionada à famosa segunda consideração extemporânea de 1873: uma verdade abstrata afeita a uma racionalidade de pureza incorpórea não passa de vã, ridícula e demasiadamente humana ilusão. Atingir uma perspectiva divina distanciada da lama da vida é tão possível quanto o Barão de Münchausen sair do atoleiro puxando os próprios cabelos para cima.
Mas Nietzsche, até onde sei, nunca usou o termo “pragmatismo” para sua própria filosofia – seu perspectivismo. Isso precisa ser considerado. O primeiro a usar publicamente o termo para designar a própria filosofia é indiscutivelmente William James. Em “Philosophical conceptions and practical results”, conferência proferida em Harvard, impressa para circulação interna em 1898 e, depois, publicada em livro, em 1901, James remete ao uso que Peirce fazia do termo, em 1872, em conversas do “Clube Metafísico”, um grupo de estudos formado por eles mesmos e, dentre outros, Oliver Wendell Holmes, Jr., futuro juiz da Suprema Corte dos EUA. James ainda remete a um “princípio de Peirce”, por este publicado em 1878 no artigo “Como tornar claras as nossas ideias”, para se apropriar dele, modificando-o.
O próprio Peirce só retorna ao termo pragmatismo após a conferência de James ganhar notoriedade, por volta de 1905, confirmando que o usava informalmente por volta de 1872 e também afirmando, sem qualquer base textual precisa, que a teoria é um parco corolário da definição de crença dada por A. Bain: “algo que alguém toma como base para agir” (ver Fisch 1954). Já o “princípio de Peirce”, para ele próprio, nada mais era que a essência do método científico, posteriormente identificado como máxima do pragmatismo – nada mais que a lógica da abdução. Grosso modo, a máxima estabelece um critério para definir significados conceituais relativamente às expectativas ilativas de suas consequências práticas. James assimilara essa ideia a seu “empirismo radical”; Ferdinand C. S. Schiller a interpretou como um antropomorfismo, ou um humanismo.
Até aí... em geral, tudo pode ser relacionado, dirá Peirce. Mas, quando os termos começam a ser usados a torto e a direito, é melhor abandoná-los. Com seu peculiar sarcasmo, Peirce declara:
“Então, o escritor, achando seu pirralho ‘pragmatismo’ tão promovido, sente que é hora de dar um beijo de despedida em seu filho e entregá-lo ao seu destino superior; enquanto para servir ao propósito preciso de expressar a definição original, ele pede para anunciar o nascimento da palavra ‘pragmaticismo’, a qual é feia o suficiente para estar a salvo de sequestradores.” [1905, p. 334-335].
Peirce ainda continuou usando um tanto assistematicamente ambos os termos – pragmatismo e pragmaticismo – até pelo menos 1909. A rigor, porém, ele preferia denominar sua própria filosofia de “senso-comum crítico”, ou ainda “sinequismo”, os quais seriam decorrências — ou “rebentos [issues]” — da adoção do método científico.
De maneira geral, Peirce e Nietzsche pertencem à mesma geração filosófica pós-romântica (Peirce é 5 anos mais velho), cuja ambição pode ser descrita, segundo K. O. Apel (1964/1965), como uma tentativa de construir uma mediação não dogmática entre teoria e prática, caracterizada por uma guinada linguística-pragmática-hermenêutica dada na filosofia transcendental. Kant, Schiller, Hegel e Schelling, mas também Friedrich Albert Lange (1828-1875), Karl Robert Eduard von Hartmann (1842-1906) e Ralph Waldo Emerson (1803-1882) (a quem Peirce conheceu pessoalmente, pois seu vizinho e amigo da família) eram bem conhecidos de ambos. E ambos viveram em contextos sociais de acelerada industrialização, onipresença de ideais nacionalistas, insuspeitada confiança no progresso e boa de darwinismo social. Mas (perdoem-me aqui o aristotelismo), diferenças locais não podem ser desconsideradas: uma coisa são os Estados Unidos pós-guerra civil; outra, o Império Austro-Húngaro pré-Primeira Guerra Mundial. Então, as diferenças é que são o diabo – diriam ambos. Vejamos ao menos uma.
Primeiramente, a guinada peirciana é semiótica. Desde pelo menos 1865, Peirce defendia uma concepção não-psicológica, isto é, não internalista, não mentalista e não subjetivista da lógica. Nessa época, ele buscava ampliar o escopo da lógica para incluir o estudo de todo e qualquer tipo de signo, interno ou externo à mente humana, independente de ser pensado por alguma consciência, sem prejuízo de sua capacidade – anterior e necessária à significação – de se dirigir a alguma. Aqui, encontramos em germe a ideia de que o pensamento não está em nós – nós é que estamos em pensamento – nossas mentes individuais são anacolutos da semiose natural, cósmica, na qual estamos imersos. Platônico como era, Peirce poderia dizer: a ideia não pertence à alma, mas a alma à ideia. Então, cerca de um ano antes do surgimento do próprio termo pyschologismus, cunhado até onde se sabe em 1866 por Johann Eduard Erdmann, Peirce definiu o problema.
Disso, Peirce elabora sua crítica ao cartesianismo, publicada, em versão final e inteira, em 1868, numa série de artigos sobre a cognição. Sua hipótese é: toda nossa vida mental resulta de inferências que fazemos a partir da percepção sensível. Nosso self é um signo, porquanto é uma concepção que dá consistência e “unifica” nossas experiências. Ora – raciocina ele – desde os primeiros momentos da infância, interagimos corporalmente com o mundo externo, sem exatamente distinguir entre interior e exterior. Mas os fatos e coisas externas são irredutíveis às nossas internas idiossincrasias: a diferença entre “eu” e “não-eu” é rapidamente compreendida ao tocarmos um ferro quente, por exemplo; a diferença entre a minha vontade e a vontade alheia é inferida das recusas aos meus desejos. Assim, a autoconsciência começa a se elaborar, a partir da ignorância e do erro, passo a passo, num gradual processo inferencial – que continua por toda nossa vida. E, se é assim, nosso self não é e jamais poderia ser uma concepção primeira ou fundamental, mas só seria a última – a conclusão de um raciocínio cujas premissas baseiam-se na interação com a alteridade do mundo exterior. Numa palavra, o self é uma hipótese formulada para explicar (ou justificar?) nossa falibilidade. Assim, a consciência é apenas a superfície de nossa vida mental, toda ela de natureza inferencial, fluida, contínua e processual, embora disso não nos apercebamos (Peirce apoia-se, aqui, em G. Berkeley). O pensar é um fluxo contínuo de origem externa, dos signos de fora para os de dentro – é semiose na qual estamos.
Pois então Peirce é quem antecipa cerca de 20 anos aquilo que, em Além do Bem e do Mal, Nietzsche lançará como desafio à filosofia contemporânea: seremos corajosos o bastante para fazer jus a esse animal de vontade idiossincrática e cognição situada e incorporada, evolutivamente desenvolvida – indo além dele?
Que resta de avant la lettre do pragmatismo no pensamento de Nietzsche? A meu ver, rigorosamente nada. Vivendo no mesmo Zeitgeist, diferentes pensadores receberam ideias que circulavam entre os continentes, dando a elas desenvolvimento similar e ao mesmo tempo próprio, como não poderia deixar de ser. Assim, se Peirce é anterior a Nietzsche e os argumentos podem certamente ser comparados, não obstante os direcionamentos metafísicos são bem diferentes (ver Aydin 2006).
Nesse caso, parece-me tão profícuo falar de antecipação quanto falar de influência – ou seja, zero – a importância é tarefa a fazer. Basta que se faça justiça ao fato histórico da precedência. E que, sobretudo, saibamos receber as ideias entre as quais já circulamos, levando mais além as que também nos levarem. Evoluamos!
_________________________________________________
Referências
Apel, Karl-Otto. Die Entfaltung der “sprachanalytischen” Philosophie und das Problem der “Geisteswissenschaften”. Philosophisches Jahrbuch, Friburgo; Munique; ano 72 (1964/1965), p. 239-280.
Aydin, Ciano. Beyond essentialism and relativism: Nietzsche and Peirce on reality. Cognitio: Revista de Filosofia, São Paulo, v. 7, nº 1, jan./jun. 2006, p. 25-47.
Fisch, Max H. 1954. Alexander Bain and the genealogy of pragmatism. Peirce, semeiotic, and pragmatism: essays by Max H. Fisch. edited by Kenneth Laine Ketner and Christian J. W. Kloesel. Bloomington, IN: Indiana University Press, 1986, pp. 79-109.
Marton, Scarlett. A filosofia de Nietzsche: Um pragmatismo avant la lettre. Cognitio: Revista de Filosofia, São Paulo, v. 7, nº 1, jan./jun. 2006, p. 115-120.
Peirce, Charles S. 1905. What pragmatism is. The Essential Peirce, v. 2: 1893-1913. Ed. “Peirce Edition Project”. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1998, p. 331-345.