Pela apreciação da arte em oposição ao consumo
Brunno Elias Ferreira
Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da Rede Federal de Ensino. Doutor pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
25/10/2023 • Coluna ANPOF
É comum ouvir o termo “consumo de arte” ou “consumidor” associado ao uso dos aparatos artísticos da atualidade, como serviços de streaming de música ou vídeo, e toda arte comercial. Em virtude da internet a arte teve sua amplitude e oferta aumentadas.
Sobre a oferta, menos barreiras existem entre o artista e seu público, visto que os acervos físicos estão online, bem como outras formas de ofertar e exibir essas criações. Já sobre a amplitude, é que muita coisa está sob a definição de arte, então o problema é o conceito ou aquilo que foi colocado sob ele.
O consumidor é um destruidor
Consumir algo pressupõe sua desintegração. Aquele que consome destrói aquilo que foi consumido. Se esse raciocínio for imposto a criação da arte, ele deve ser imposto ao artista, visto que aquilo que foi consumido e destruído, será demandado novamente, pois o comportamento imposto é o do consumo. Então aquele que cria deverá criar mais, e mais rapidamente para saciar a necessidade do consumidor, que introjeta em sua identidade a necessidade de consumir para ser algo nessa sociedade. Dessa forma, se consome aquilo que se chama arte e também o artista. Se não se consome seu corpo ou sua saúde, se consome sua capacidade criadora, e ao final, restará apenas uma casca oca, que se reflete em sua criação.
Se consumir é o ato de destruir, o consumidor decreta o fim da arte, pois esse consumo cessará quando faltar recursos ou pela ausência da arte. Sendo assim, o problema é identificar o que é arte na atualidade.
A arte
O termo arte deriva da técnica, e na antiguidade o artista era alguém que dominava o conceito e a técnica que empregava, no sentido de processos necessários para materializar a essência da sua ideia. Logo, a arte era tida como base para o desenvolvimento do homem, pois ela era capaz de demonstrar a essência de algo por meio da técnica e imaginário do artista, que podia tratar de assuntos da vida e afetar aquele que usufrui da sua arte. Uma maneira de demonstrar esse “tocar” o observador com a arte pode ser entendido pela catarse. Com ela, o observador podia se relacionar com a obra e “descarregar” suas emoções e sentimentos.
A catarse não é a única maneira de ser afetado pela arte, pois com a evolução da técnica e da heterogeneização dos artistas, outros componentes puderam ser inseridos na arte, enriquecendo-a. Tome-se como exemplo obras realistas que traziam a visão objetiva do artista para as telas na forma dos retratos. Nesse tipo de arte é possível observar a realidade, que é dinâmica, de uma forma imortalizada no tempo, visto que o artista parava o instante e trazia ao observador sua lente, que por sua vez, usava um filtro individual e se relacionava com a obra.
Esse tipo de obra parece ter perdido espaço para a fotografia e o cinema. A evolução técnica podia, efetivamente, capturar a realidade em um cenário natural, por exemplo. Se interpretada dessa forma, essas técnicas atuais fazem arte ou registram a arte que está no real? Cabe esclarecer essas coisas.
A fotografia e o cinema capturam a realidade e podem, a partir disso, fazer arte. Mas a realidade objetiva não é arte, pode, no máximo, ser bela. A arte pressupõe o domínio técnico, e a realidade está posta de acordo com a natureza. Por exemplo, um cenário do alto de uma colina, com campos verdes sob o pôr do sol, pode ser um cenário belo, criado ao rigor ou acaso da natureza. Quando o artista aplica sua técnica de maneira adequada e intencional, seja em um registro estático ou dinâmico, pode criar arte e ter o que dizer para tocar o observador.
Os limites da arte
Até aqui o que foi exemplificado como arte pode se manifestar apenas por existir, como se a arte terminasse em si mesma, ao não ter uma função prática. Esse pode ser o caso, no qual a manifestação artística se dá por si mesma, mas também pode ter uma função. É o exemplo da arquitetura e outras manifestações que trazem as características da arte, mas que também servem a uma função. Nesse caso se tem uma arte servil, no sentido de servir a algo além da própria arte.
Diante do exposto a arte deve apresentar domínio técnico do artista, ter capacidade de provocar sensações no observador e ter uma mensagem em si. O fato de ser servil não anula a arte, apenas lhe dá mais uma característica enquanto não se contraponha às anteriores, primordiais. Não pode ser arte, por exemplo, obras que tem como objetivo apenas entreter, no sentido de ocupar o tempo do observador, que não levará mensagem alguma ou será afetado pela obra em questão. A arte pressupõe um diálogo entre o artista, por meio de sua obra, com o apreciador. O entretenimento é servil, pois serve a alguma finalidade, e se for o objetivo principal, final da obra, logo a mesma não é arte.
O que não cabe no campo da arte é o consumo. Consumir, no sentido de destruir, é o mesmo que o animal irracional faz com o alimento. É algo necessário para a sua sobrevivência, mas esse animal vai consumir o suficiente e se dar por satisfeito. O consumo realizado pelo homem pode se dar de maneira desenfreada e se transformar no seu tornar-se a ser, com ele se identificando pelo e no consumo. Algo parecido com o comer, beber e transar de maneira desmedida, exagerada, sendo arrastado por paixões. É como buscar o prazer sem comedimento, com ausência de significado, que acaba por esvaziar o ato. O atual “consumo da arte” é propagado por filmes comerciais e músicas intensas de curta duração que precisam ser tocadas várias vezes para atender aos anseios do capital.
Nessa relação de consumo o artista deixa de existir e dá lugar a outros seres: a celebridade e o criador de conteúdo. A celebridade apenas porque é celebrada, desnaturada de significado; e o criador de conteúdo como aquele que elabora algo para preencher um espaço. Assim se perde alguém essencial para a formação de valor no homem, o artista, e se tenta colocar em seu lugar aberrações sem valor para a transcendência, mas com valor monetário.
Os tipos de arte
Como o termo arte está posto, vale organizar a arte de forma a provocar sua apreciação em oposição ao seu consumo. De forma sintética é possível organizar a arte em três manifestações principais na atualidade.
A arte erudita é a arte por excelência, pois demonstra o ápice do domínio da técnica e compreensão da mensagem que o artista quer passar ao apreciador. Essa arte requer estudo e esforço, e necessita de educação por parte do apreciador para ser usufruída. Como ela se dá por um processo de cristalização, solidificando-se com o tempo e por esforço dos seus artistas, ela apresenta considerável longevidade.
A arte popular é a segunda em domínio técnico, mas não perdendo em complexidade. Ela se dá no seio do povo, seja como manifestação cultural de um grupo ou a exposição dos sentimentos e pensamentos de um artista dentro desse coletivo. A arte popular é orgânica, tem vida própria, pois seus artistas surgem e vão colaborando com a sua criação, que pode carecer de técnica, mas sempre carrega complexidade. Aqui surge a arte efêmera e a política. Efêmera no sentido de durar, enquanto corpo material, um instante no tempo em relação ao corpo do observador, mas como provoca impacto real nele, seu efeito pode ter longa duração, provocando movimentos internos enriquecendo o imaginário do indivíduo. E a arte política, no sentido que expõe um modo de agir na sociedade, provocando impactos na dinâmica social.
E a última, tanto em complexidade quanto em domínio técnico, é a arte de massa. Ela também pode ser chamada de arte enlatada, e é o objeto da crítica desse texto. É a arte da atualidade propriamente feita para consumo, a qual se destruiu justamente por não provocar efeitos duradouros, seja no indivíduo ou na sociedade. Ela também não provoca reflexão, visto que é apenas um invólucro com conteúdo inócuo. São exemplos os filmes comerciais, as músicas mais tocadas em serviços de streaming, o excessivo lançamento de séries, boa parte das revistas em quadrinhos e jogos de videogame. A arte de massa é feita segundo os ditames do capital: cria-se a necessidade, atende-se a demanda, e se repete o ciclo. O consumidor é apenas o ser que, literalmente, “joga dinheiro na tela” em troca de baboseiras. É como o cliente de fast-food que paga para ser alimentado enquanto sofre desnutrição. Essa dinâmica mantém ricos os donos desses sistemas e plataformas, criam celebridades que representam o vazio da vida atual, e mantém ignorantes os integrantes desse público.
Exposto isso, espera-se que a arte se manifeste de maneira valorosa com seus protagonistas: os artistas. Os apreciadores estão dispostos, e em tensão com os consumidores desmedidos. Mesmo assim, a arte continua com um problema, pois corrompida por dentro, é como um paciente no leito que precisa de ajuda para voltar à vida.
Que a arte viva!